sexta-feira, 14 de outubro de 2011

As desigualdades são a maior insegurança

Padrão dos Descobrimentos. The Monument to the...Image via Wikipedia

António Campos


No final de Novembro, com poucos dias de intervalo, Portugal foi palco de dois acontecimentos que mostram bem como existem, em linhas gerais, duas narrativas em disputa sobre o que se entende por segurança. O primeiro foi a Cimeira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que teve lugar em Lisboa a 19 e 20 de Novembro, e o segundo a Greve Geral de 24 de Novembro, a maior que o país conheceu em toda a sua história. A Aliança Atlântica privilegia uma concepção de segurança como resposta político-militar a ameaças que, em qualquer parte do globo, ponham em causa os interesses estratégicos dos seus Estados-membros. O movimento de contestação às políticas de austeridade que se traduziu na Greve Geral entende a segurança como a construção de sociedades de bem-estar, processo em que é dada prioridade ao combate às desigualdades socioeconómicas.

A primeira narrativa toma como um dado a existência, e até a multiplicação, de ameaças à segurança (das convencionais às sanitárias e ambientais), não actuando sobre as suas causas e acabando por recorrer a meios que tendem até a agravar os problemas A segunda narrativa procura intervir sobre as causas fundamentais da insegurança que corrói as sociedades (das assimetrias de rendimentos à injustiça fiscal, ao desemprego ou à pobreza), inserindo-se numa história de movimentos sociais que tem sido responsável pelas configurações de sociedades mais estáveis e morais, mais coesas e seguras, que conhecemos.

Sobretudo em momentos de crise como o que atravessamos, em que se tornam mais evidentes as escolhas envolvidas na afectação de recursos escassos e em que tendem a aumentar as respostas securitárias à legítima manifestação da discordância, seria útil que se deixasse de pensar, à boleia do que é veiculado pela generalidade da comunicação social, que do lado do conceito de segurança da OTAN está um qualquer consenso global sobre como garantir a paz e só do lado da concepção dos movimentos sociais existe uma posição não consensual, que traduz e gera conflitos internos. Mesmo correndo o risco de alguma simplificação, é importante que se compreenda que ambas as formas de entender a segurança correspondem a visões do mundo e à defesa de princípios e interesses que conflituam… com outros princípios e interesses. E que se compreenda também que em ambas as narrativas estão presentes leituras actualizadas da globalização neoliberal, que não estão presas a qualquer perspectiva do passado (a Guerra Fria ou o pré-crise), mesmo quando divergem, por exemplo, na necessidade de promover ou combater os mecanismos de desenvolvimento do capitalismo financeiro.
Atente-se em alguns aspectos da concepção de segurança mundial que está patente no «Novo Conceito Estratégico» aprovado em Lisboa na Cimeira da OTAN, intitulado«Compromisso Activo, Defesa Moderna». Em primeiro lugar, formaliza-se a associação entre defesa e segurança, alargando a esfera de actividade: da resposta aos ataques convencionais até à gestão de crises e à segurança colectiva. Daqui decorre a extensão, virtualmente à escala global, do perímetro geográfico de actuação para fora do espaço do Atlântico Norte, mesmo que a organização continue a definir-se como regional (formalizam-se práticas anteriores).

Aos novos espaços de actuação da organização juntam-se as novas parcerias e as novas alianças com diferentes actores políticos, militares e civis, bem como a definição das «novas ameaças» à «segurança do século XXI»: armas convencionais, nuclear, terrorismo, grupos extremistas, pirataria, ciber-ataques, actividades ilegais transnacionais (tráfico de armamento, narcóticos e seres humanos), ataques a vias de comunicação e de transporte de recursos estratégicos (controlo da energia, comércio…), bem como perigos para a saúde ou decorrentes das alterações climáticas, da escassez de água, etc. A Aliança Atlântica entende que todas estas «ameaças» vão «moldar o ambiente de segurança futura em áreas importantes» para os seus Estados-membros, ou seja, que a defesa dos interesses estratégicos (políticos, económicos…) destes países poderá suscitar, para todas essas ameaças, intervenções político-militares a oscilar entre a concertação, a persuasão e o conflito aberto.

Há que reconhecer que o instrumento político-militar forjado por este «Novo Conceito» está bem ajustado à geopolítica da globalização. A aposta num conceito ágil e capaz de se moldar à «instabilidade» e às «incertezas» do mundo contemporâneo não é uma indefinição ou fraqueza existencial, é uma opção estratégica e eficaz − preocupante. É uma resposta bem adaptada a dar segurança ao mundo líquido dos mercados financeiros, ao mundo dos conflitos pelo controlo dos recursos naturais «estratégicos» e ao mundo das alianças em constante (e imprevisível) reconfiguração. Um instrumento flexível, a meio caminho entre a substituição do «mundo unipolar» pela«renovação da nova liderança dos Estados Unidos» [1] e as novas disputas de hegemonia por parte de potências emergentes, como a China, de cujo desenvolvimento económico não resultará necessariamente um mundo multipolar.

Mas serão estes os verdadeiros perigos para a insegurança com que as sociedades hoje se confrontam e será o instrumento político-militar o mais adequado para lhes dar resposta? Será possível encarar o problema do fundamentalismo sem pôr fim à islamofobia ou sem resolver os problemas socioeconómicos das sociedades onde ele cresce, quando essas zonas são tratadas como interesses estratégicos devido ao acesso a recursos energéticos? Será possível resolver de forma justa conflitos sobre a água enquanto este bem escasso for tratado como recurso estratégico pelo qual se luta, e que ganhe o mais forte, em vez de ver visto como um bem comum? Será possível cuidar da saúde da humanidade com remédios político-militares quando a montante não se dá prioridade à garantia de que todos os cidadãos estão bem nutridos e têm acesso universal e gratuito a cuidados de saúde de qualidade?

Para o movimento sindical e social que ganhou corpo na Greve Geral de 24 de Novembro, o maior perigo para a segurança das sociedades, em particular a europeia, é actualmente essa concertação entre os governos nacionais e as instâncias da União Europeia para impor políticas cada vez mais austeritárias, que condenam as economias, sobretudo as periféricas, a espirais recessivas e que são acompanhadas de um aumento galopante das desigualdades socioeconómicas.

De acordo com este ponto de vista, a insegurança − a falta de autonomia, a angústia, o medo − tem como causa o processo de disputa do Estado pelo neoliberalismo que tem vindo a desviar os recursos e as finalidades dos poderes públicos, a que estão obrigados pelo contrato social democrático, para permitir a acumulação do capital financeiro e o aprofundamento das desigualdades socioeconómicas. O projecto neoliberal fá-lo através de rendimentos cada vez mais assimétricos, e não redistribuídos, de políticas fiscais que continuam a recusar-se a taxar o sistema financeiro (apesar de ser o responsável pela crise) e pela destruição activa dos mecanismos de segurança que as sociedades conseguiram construir através das leis laborais e dos serviços públicos (educação, saúde, segurança social…). O maior desafio à segurança do século XXI é a defesa do Estado social, do chamado modelo social europeu, que está a ser destruído pela própria União Europeia.

É a clarificação de posições divergentes que dignifica a informação e o debate de ideias e que permite que os cidadãos participem na democracia como coisa sua. A imagem meramente ritualista dos acontecimentos, seja ela positiva ou negativa, que ignora os seus contextos e o que de substantivo neles está em jogo, assemelha-se, na melhor hipótese, a esses alimentos-lixo que podem dar alguma satisfação momentânea mas são vazios de nutrientes ou, na hipótese pior (mas realista), esconde a imposição mediática de falsos consensos políticos que só traduzem uma relação de poder. E, nas condições actuais, bem se sabe de que lado está o poder, o dos que tudo podem fazer, sem nunca pagarem por isso, porque outros são sempre chamados a pagar a factura. Até que um dia a devolvam ao remetente, de preferência com juros de mora e indemnização por danos causados.


Notas
[1] Barack Obama, «Renewing American Leadership», Foreign Affairs, Julho de 2007.

por Sandra Monteiro
Dez.2010


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