António Campos
No final de Novembro, com poucos dias de intervalo, Portugal foi palco de dois acontecimentos que mostram bem como existem, em linhas gerais, duas narrativas em disputa sobre o que se entende por segurança. O primeiro foi a Cimeira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que teve lugar em Lisboa a 19 e 20 de Novembro, e o segundo a Greve Geral de 24 de Novembro, a maior que o país conheceu em toda a sua história. A Aliança Atlântica privilegia uma concepção de segurança como resposta político-militar a ameaças que, em qualquer parte do globo, ponham em causa os interesses estratégicos dos seus Estados-membros. O movimento de contestação às políticas de austeridade que se traduziu na Greve Geral entende a segurança como a construção de sociedades de bem-estar, processo em que é dada prioridade ao combate às desigualdades socioeconómicas.
A primeira narrativa toma como um dado a existência, e até a multiplicação, de ameaças à segurança (das convencionais às sanitárias e ambientais), não actuando sobre as suas causas e acabando por recorrer a meios que tendem até a agravar os problemas A segunda narrativa procura intervir sobre as causas fundamentais da insegurança que corrói as sociedades (das assimetrias de rendimentos à injustiça fiscal, ao desemprego ou à pobreza), inserindo-se numa história de movimentos sociais que tem sido responsável pelas configurações de sociedades mais estáveis e morais, mais coesas e seguras, que conhecemos.
Sobretudo em momentos de crise como o que atravessamos, em que se tornam mais evidentes as escolhas envolvidas na afectação de recursos escassos e em que tendem a aumentar as respostas securitárias à legítima manifestação da discordância, seria útil que se deixasse de pensar, à boleia do que é veiculado pela generalidade da comunicação social, que do lado do conceito de segurança da OTAN está um qualquer consenso global sobre como garantir a paz e só do lado da concepção dos movimentos sociais existe uma posição não consensual, que traduz e gera conflitos internos. Mesmo correndo o risco de alguma simplificação, é importante que se compreenda que ambas as formas de entender a segurança correspondem a visões do mundo e à defesa de princípios e interesses que conflituam… com outros princípios e interesses. E que se compreenda também que em ambas as narrativas estão presentes leituras actualizadas da globalização neoliberal, que não estão presas a qualquer perspectiva do passado (a Guerra Fria ou o pré-crise), mesmo quando divergem, por exemplo, na necessidade de promover ou combater os mecanismos de desenvolvimento do capitalismo financeiro.
Atente-se em alguns aspectos da concepção de segurança mundial que está patente no «Novo Conceito Estratégico» aprovado em Lisboa na Cimeira da OTAN, intitulado«Compromisso Activo, Defesa Moderna». Em primeiro lugar, formaliza-se a associação entre defesa e segurança, alargando a esfera de actividade: da resposta aos ataques convencionais até à gestão de crises e à segurança colectiva. Daqui decorre a extensão, virtualmente à escala global, do perímetro geográfico de actuação para fora do espaço do Atlântico Norte, mesmo que a organização continue a definir-se como regional (formalizam-se práticas anteriores).
Aos novos espaços de actuação da organização juntam-se as novas parcerias e as novas alianças com diferentes actores políticos, militares e civis, bem como a definição das «novas ameaças» à «segurança do século XXI»: armas convencionais, nuclear, terrorismo, grupos extremistas, pirataria, ciber-ataques, actividades ilegais transnacionais (tráfico de armamento, narcóticos e seres humanos), ataques a vias de comunicação e de transporte de recursos estratégicos (controlo da energia, comércio…), bem como perigos para a saúde ou decorrentes das alterações climáticas, da escassez de água, etc. A Aliança Atlântica entende que todas estas «ameaças» vão «moldar o ambiente de segurança futura em áreas importantes» para os seus Estados-membros, ou seja, que a defesa dos interesses estratégicos (políticos, económicos…) destes países poderá suscitar, para todas essas ameaças, intervenções político-militares a oscilar entre a concertação, a persuasão e o conflito aberto.
Há que reconhecer que o instrumento político-militar forjado por este «Novo Conceito» está bem ajustado à geopolítica da globalização. A aposta num conceito ágil e capaz de se moldar à «instabilidade» e às «incertezas» do mundo contemporâneo não é uma indefinição ou fraqueza existencial, é uma opção estratégica e eficaz − preocupante. É uma resposta bem adaptada a dar segurança ao mundo líquido dos mercados financeiros, ao mundo dos conflitos pelo controlo dos recursos naturais «estratégicos» e ao mundo das alianças em constante (e imprevisível) reconfiguração. Um instrumento flexível, a meio caminho entre a substituição do «mundo unipolar» pela«renovação da nova liderança dos Estados Unidos» [1] e as novas disputas de hegemonia por parte de potências emergentes, como a China, de cujo desenvolvimento económico não resultará necessariamente um mundo multipolar.
Mas serão estes os verdadeiros perigos para a insegurança com que as sociedades hoje se confrontam e será o instrumento político-militar o mais adequado para lhes dar resposta? Será possível encarar o problema do fundamentalismo sem pôr fim à islamofobia ou sem resolver os problemas socioeconómicos das sociedades onde ele cresce, quando essas zonas são tratadas como interesses estratégicos devido ao acesso a recursos energéticos? Será possível resolver de forma justa conflitos sobre a água enquanto este bem escasso for tratado como recurso estratégico pelo qual se luta, e que ganhe o mais forte, em vez de ver visto como um bem comum? Será possível cuidar da saúde da humanidade com remédios político-militares quando a montante não se dá prioridade à garantia de que todos os cidadãos estão bem nutridos e têm acesso universal e gratuito a cuidados de saúde de qualidade?
Para o movimento sindical e social que ganhou corpo na Greve Geral de 24 de Novembro, o maior perigo para a segurança das sociedades, em particular a europeia, é actualmente essa concertação entre os governos nacionais e as instâncias da União Europeia para impor políticas cada vez mais austeritárias, que condenam as economias, sobretudo as periféricas, a espirais recessivas e que são acompanhadas de um aumento galopante das desigualdades socioeconómicas.
De acordo com este ponto de vista, a insegurança − a falta de autonomia, a angústia, o medo − tem como causa o processo de disputa do Estado pelo neoliberalismo que tem vindo a desviar os recursos e as finalidades dos poderes públicos, a que estão obrigados pelo contrato social democrático, para permitir a acumulação do capital financeiro e o aprofundamento das desigualdades socioeconómicas. O projecto neoliberal fá-lo através de rendimentos cada vez mais assimétricos, e não redistribuídos, de políticas fiscais que continuam a recusar-se a taxar o sistema financeiro (apesar de ser o responsável pela crise) e pela destruição activa dos mecanismos de segurança que as sociedades conseguiram construir através das leis laborais e dos serviços públicos (educação, saúde, segurança social…). O maior desafio à segurança do século XXI é a defesa do Estado social, do chamado modelo social europeu, que está a ser destruído pela própria União Europeia.
É a clarificação de posições divergentes que dignifica a informação e o debate de ideias e que permite que os cidadãos participem na democracia como coisa sua. A imagem meramente ritualista dos acontecimentos, seja ela positiva ou negativa, que ignora os seus contextos e o que de substantivo neles está em jogo, assemelha-se, na melhor hipótese, a esses alimentos-lixo que podem dar alguma satisfação momentânea mas são vazios de nutrientes ou, na hipótese pior (mas realista), esconde a imposição mediática de falsos consensos políticos que só traduzem uma relação de poder. E, nas condições actuais, bem se sabe de que lado está o poder, o dos que tudo podem fazer, sem nunca pagarem por isso, porque outros são sempre chamados a pagar a factura. Até que um dia a devolvam ao remetente, de preferência com juros de mora e indemnização por danos causados.
Notas
por Sandra Monteiro
Dez.2010
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