... e a Doença de Alzheimer.
«Envelhecer significa a transformação gradual (ou antes, súbita) de um
mundo de rostos familiares (quer seja de amigos ou de inimigos) numa espécie de
deserto habitado por rostos estranhos. Por outras palavras, não sou eu que me
retiro do mundo, é o mundo que se desfaz». (Hannah Arendt)
Goethe definiu o envelhecer como
o retirar-se gradualmente da aparência.
Porém, quando começou a envelhecer, Hannah Arendt viveu essa separação do mundo, não como retirada do mundo, mas como o próprio
mundo a retirar-se à sua volta, ou melhor, como a progressiva dissolução de um mundo de seres
prontos a acolher o seu aparecer, através do desaparecimento desses seres.
Arendt capta e tematiza uma experiência
universal: a morte dos outros próximos, amigos ou inimigos, faz de nós órfãos de mundo: o nosso mundo começa
a estreitar-se e a retirar-se gradual ou subitamente até ao seu desaparecimento
final.
De certo modo, o crescimento e o envelhecimento são etapas opostas do ciclo vital: o envelhecimento estreita
os horizontes do nosso mundo,
definidos e traçados pelos adultos – esses estranhos cartógrafos remotos que traçam o mapa do nosso sistema localizado de relações de conflito ou de cooperação
no mundo - durante o nosso período de crescimento. Os endereços que coleccionámos durante este período de expansão - com
o objectivo de ingressarmos na cosmovisão
dos adultos - começam a desaparecer à medida que envelhecemos: cada
endereço conquistado por cada um de nós é mais uma localização do nosso eu na
rede de relações de um mapa social
em expansão, e a perda de um endereço - a morte de um outro, querido ou
detestado - implica o retraimento,
ou melhor, a contracção desse
nosso mundo de outros prontos a acolher o nosso aparecer. A troca de e-mails pode ajudar a
compreender a ideia nuclear subjacente à concepção arendtiana do
envelhecimento.
Quando envio o meu endereço exacto a um «estranho» com quem teclei algures
num chat e recebo a sua resposta, a minha rede de relações alarga-se, na medida
em que me tornei visível para mais um outro ser. Mas, se esse outro morrer mais
tarde e deixar por isso de me responder, o meu mundo de relações começa a
contrair-se. Ora, envelhecer é precisamente tornarmo-nos invisíveis para o
mundo, através da morte dos outros que acolhiam o nosso aparecer. Envelhecer é
viver essa dolorosa experiência do nosso próprio apagamento: a "morte" rouba-nos os outros prontos a
receber a revelação - a manifestação - do nosso ser singular e a ser
testemunhas dela. O facto de não podermos manifestar a mais ninguém a nossa auto-revelação amputa-nos da nossa abertura ao mundo. (Fonex: Estou a
seguir um caminho muito complexo! Claustrofobia
sociológica, a minha e a de Arendt! :::)
A doença de Alzheimer coloca
um grande desafio à ontologia
fenomenológica que suporta o pensamento político de Hannah Arendt: «O
mundo em que os homens nascem contém muitas coisas, naturais e artificiais,
vivas e mortas, transitórias e sempiternas, que têm todas em comum o facto de
aparecerem e, por essa razão, são feitas para serem vistas, ouvidas, tocadas,
saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes dotadas
de órgãos sensoriais apropriados. Neste
mundo em que entramos, aparecendo vindos de parte nenhuma, e do qual
desaparecemos para parte nenhuma, Ser e Aparência coincidem. A
matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu
ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas vivas.
Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não pressuponha um espectador.
Por outras palavras, nada do que é, na medida em que aparece, existe no
singular; tudo o que é está destinado a ser percebido por alguém.
Não é o Homem
mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra» (Arendt). Não pretendo impugnar esta
coincidência entre o ser e a aparência, até porque ela não é estranha à dialéctica: o que pretendo fazer é
pensar a condição terrível - e anti-humana – do doente de Alzheimer à luz do princípio de que o aparecer é um co-aparecer, na medida em que os
outros seres aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. Para Arendt, o
sujeito puro espectador não existe: cada um de nós é, ao mesmo tempo,
espectador e actor nesse palco que é o mundo
comum: «Quem vê quer ser visto, quem ouve quer ser ouvido, quem toca
quer ser tocado» (Arendt). (:::)
J Francisco Saraiva de Sousa
Fev.2011