Death Domination (Photo credit: Wikipedia) |
António Campos
O que resta explicar é a origem da
dominação. A origem da dominação masculina não precede a dominação de classes
pelo simples fato de que nas sociedades primitivas, assim como nas sociedades
indígenas, não existe dominação da mulher. Por isso, a questão a ser respondida
não é sobre a origem da dominação da mulher e sim a origem da dominação de
classe.
O processo histórico que culminou com a
formação das sociedades de classes se caracterizou por ser longo. Não cabe aqui
remontar o processo de transição da animalidade para a humanidade, que foi
extremamente longa, tal como vários pesquisadores reconhecem (Geertz, 1980;
Moscovici, 1977; Leontiev, 1980; Engels, 1980). Mas é necessário colocar em
evidencia a existência dessa transição. Sem dúvida, o ser humano foi o
resultado de um longo processo histórico, ao contrário do que pensam aqueles
que consideram que ele surgiu de repente, em um momento que seria um “ponto
crítico”.
A vida animal é uma vida comunitária e
não é desprovida de laços entre os seres que compõem uma determinada população
animal. A teoria de Mendel segundo a qual a vida animal não deve ser estudada a
partir de indivíduos e sim a partir de uma população é extremamente correta. Os
macacos de várias espécies (rhesus, chimpanzés, gorilas, etc.) vivem em bandos
(Moscovici, 1977). As primeiras sociedades humanas compartilham as mesmas
características das populações animais. As sociedades de caçadores-coletores
também viviam em bandos (Service, 1971; Moscovici, 1977).
O interessante é descobrir alguma
hipótese sobre a origem do poder a partir da transformação da sociedade.
Podemos reconhecer que as sociedades de caçadores-coletores eram bastante
dependentes dos recursos existentes no meio ambiente. A relação que esta
sociedade mantinha com o meio ambiente é fundamental para se compreender as
suas relações internas. Isto se deve ao fato de que as sociedades primitivas
não possuírem as condições de produzirem seus meios de existência, mas apenas
de colher ou caçar o que existe de disponível no meio ambiente.
O desenvolvimento das forças produtivas
marca a origem das sociedades de classes. Tal desenvolvimento significou o
desenvolvimento da “principal força produtiva”, a força de trabalho. Os seres
humanos desenvolveram suas habilidades tanto manuais quanto intelectuais
através destas mesmas atividades. Eles também criaram meios exteriores que
permitiam-lhes enfrentar os obstáculos do meio ambiente. Tais meios foram
armas, técnicas, consciência de aspectos do meio ambiente (tanto do mundo
animal quanto vegetal), etc.
Isto já vinha ocorrendo desde a época
das sociedades de caçadores-coletores, nas quais se utilizavam armas, tais como
arcos e flechas, machados de pedra, etc., e também se desenvolvia a consciência
relacionada com o processo da caça, onde se buscava descobrir as formas mais
adequadas de encontrar e submeter a caça.
Este desenvolvimento produziu um aumento
populacional, pois desta forma cai o índice de mortalidade infantil e
aumenta-se a idade média de vida das pessoas, já que há o crescimento da
produção, a criação de formas de defesa de outros animais mais eficientes,
elevava-se a quantidade de alimentação adquirida, etc. Este crescimento
populacional, por sua vez, provocou a criação de diversas regras sociais para
controlá-lo. Podemos dizer, que uma das principais características deste tipo
de sociedade é a busca incessante do controle sobre o aumento populacional. As
regras de exogamia têm como principal objetivo controlar este crescimento. O
mesmo acontece com as guerras e é este também o motivo do infanticídio
realizado por algumas sociedades primitivas.
O desenvolvimento posterior se
caracterizou pela aprendizagem da domesticação dos animais e da agricultura.
Daí surge a transição do nomadismo ao sedentarismo. Isto tem várias
conseqüências para a sociedade primitiva. Uma delas se encontra no fato de que
pela primeira vez se podia falar em propriedade do solo. A agricultura abriu
caminho para o domínio sobre territórios e o pastoreio abriu caminho para a
propriedade de animais. Entretanto, o aparecimento da propriedade não aparece
imediatamente com tal transição. Apenas a sua possibilidade está dada. Cabe
lembrar que daí surge a propriedade coletiva. Há assim um crescimento da
produção, o que provoca o crescimento populacional. Este crescimento já não era
controlado pelas comunidades devido ao fato da produção ter aumentado. Mas aí
também se revela um crescimento da divisão do trabalho. Surge a especialização
do trabalho. Isto é reforçado com o desenvolvimento da cerâmica e da
metalurgia. Pastores, agricultores, ferreiros, etc., componham o novo quadro de
divisão do trabalho, que se limitava, na comunidade primitiva, à divisão sexual
e etária do trabalho. Também surgem os sacerdotes e como veremos adiante, os
guerreiros especializados.
A expansão da divisão social do trabalho
não constitui ainda as classes sociais devido ao fato de sua interdependência e
a existência de uma unidade social que produzia a cooperação sem haver
exploração. A divisão existia mas não produzia classes justamente porque a
divisão estava submersa na homogeneidade da comunidade. Entretanto, não só a
possibilidade estava dada como a tendência ao surgimento das classes já existia
e se manifestava. O crescimento da divisão social do trabalho provocou
alterações no conjunto das relações sociais, tal como nas relações de
parentesco, nas relações intertribais, no novo papel atribuído às crianças,
etc.
O aumento da produção não só
proporcionou um crescimento populacional como também possibilitou o surgimento
da produção mercantil simples, a troca mercantil simples, o sedentarismo, a
expansão territorial, etc. A guerra também se tornou mais intensa. Isto ocorreu
devido a diversos motivos, sendo que três se destacavam: a) a utilização de
metais como o cobre, que não é encontrado com a mesma facilidade que a pedra e
que se encontra principalmente em regiões montanhosas, produziu a necessidade
de expedições para tais regiões, o que certamente provocava confrontos entre
tribos diferentes (sem dúvida, ao lado das tribos de agricultores e pastores
continuavam existindo outras tribos, tanto de caçadores-coletores, quanto de
outros tipos que poderíamos chamar de “mistos” ou “intermediários”); b) o
aumento populacional que produzia “aldeias-filhas” (Gordon Childe, 1988) e,
conseqüentemente, a expansão territorial; e c) o esgotamento do solo pelo seu
uso sem utilização de técnicas de restauração, o que tornava necessário a
mudança de território.
Esta guerra teve como principal
conseqüência a formação de uma casta nova: a casta dos guerreiros. Estes se
especializaram na guerra e na proteção de suas aldeias. A produção de um
excedente visando a manutenção da comunidade em tempos de entre safra acabou
sendo utilizada em parte para sustentar esta casta, que buscava cada vez mais
se autonomizar. Os inimigos eram mortos e a descoberta da possibilidade
de “domesticar” os seres humanos abriu caminho para a instituição da
escravidão. Podemos colocar a hipótese de que foram os guerreiros que se
tornaram os primeiros senhores de escravos e formaram uma união para manter o
seu domínio sobre os escravos e posteriormente sobre toda a comunidade. Nasce,
assim, a sociedade de classes. Esta união de guerreiros para manter o controle
dos escravos e posteriormente de toda sociedade é o que chamamos de estado (que
devido ao fetichismo da linguagem sua inicial é escrita geralmente com letra
maiúscula e aqui rompemos com tal idolatria). Desta forma, as sociedades de
classes e o estado surgem simultaneamente, ou seja, a propriedade privada não
antecede a existência do estado e o estado não antecede a existência da
propriedade privada e, neste sentido, tanto alguns “anarquistas” quanto alguns
“marxistas” estão equivocados. Esta é a origem da dominação, do poder. O estado
surge com o surgimento da dominação de classe na produção.
O modo de produção escravista se expande
e demonstra o seu potencial econômico subjugando todas as outras formas de
produção e o desenvolvimento da troca mercantil simples acabou proporcionando o
comércio de escravos e o surgimento de uma nova forma de transformar os homens
e mulheres livres em escravos: através da dívida. A moeda, já em uso nesta
forma de sociedade, e a troca mercantil simples marcariam um meio adicional de
se conseguir escravos, a principal fonte de riquezas do escravismo
antigo.
É assim que surge a sociedade de
classes. A opressão da mulher, no verdadeiro sentido do termo e não no sentido
fantasioso que se vê em certas concepções, surge a partir daí, embora as
relações sociais entre os sexos já tivesse começado a alterar-se durante o
período de transição. A mulher livre passava a ter uma posição inferior no
interior da unidade de produção e a escravização das mulheres se tornou comum
na sociedade escravista. As mulheres foram transformadas, ideologicamente, em
seres inferiores e equivalentes aos escravos e estrangeiros, ou seja, possuindo
um estatuto social e político inferior. No plano social, o trabalho das
mulheres livres não era compensado, pois era revertido para o marido, devido à
instauração da monogamia e assim se pode instaurar o processo de herança da
propriedade e a opressão da mulher pelo homem.
Em outros lugares, em especial na Ásia,
houve uma forma diferente de transição para a sociedade de classes. Trata-se do
surgimento não do modo de produção escravista e sim do modo de produção
tributário, também chamado de modo de produção asiático. Este se caracterizava
pelo surgimento de um grupo de pessoas que controlava as diversas comunidades
produtoras através de um poder centralizado e realizava a exploração através da
cobrança de tributos justificada pela realização de tarefas coletivas de grande
envergadura, tal como a irrigação de terras não aptas para a produção. Aqui
também o estado surge junto com as classes sociais. A burocracia tributária
domina os aldeões e lhes explora, ou seja, a classe proprietária é ao mesmo
tempo a classe dirigente.
No modo de produção escravista, os
senhores de escravos dominam estes nas unidades de produção e o controle sobre
eles e demais classes e frações de classes é realizado pelo poder coletivo
desta classe, o estado. Surge uma divisão no interior da classe dominante entre
os que se voltam apenas para a exploração na unidade de produção e aqueles que
cuidam da manutenção destas relações, ou seja, se aquartelam no estado. No modo
de produção tributário, esta divisão não ocorre e esta é uma das principais
diferenças entre estes dois modos de produção. Nesta forma de dominação,
marcada pelo conflito entre dominantes e dominados, ou seja, pela luta de classes,
surge momentos de crise e de decadência. Abre-se espaço para a formação de
novas formas de sociedade. Na Europa ocidental, ocorreu a transição para o modo
de produção feudal, o que significou a transição da exploração do escravo pela
exploração do servo. Posteriormente, neste mesmo continente, surgiria o modo de
produção capitalista, uma nova forma de exploração de classe, marcada pela
dominação da classe capitalista sobre a classe operária. Este, com sua
tendência expansionista, tomou conta do mundo ou, segundo a expressão de Marx,
criou “um mundo a sua imagem”.
Enfim, podemos dizer que a origem do
poder significa a origem do estado, das classes sociais, da propriedade
privada, etc. Isto tudo significa apenas modos de ver a mesma coisa, são aspectos
indissoluvelmente ligados. Neste sentido, o poder, isto é, a relação de
dominação, surge com as classes sociais e o seu par inseparável, o estado.
Nildo Viana
Fev.2011
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