sexta-feira, 13 de julho de 2012

Uma questão de sobrevivência

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Uma árvore não é a floresta e uma variação trimestral do Produto Interno Bruto (PIB) não é de costume, em si mesma, salvo quando convém ao Governo ou à oposição falha de agenda, motivo suficiente para ilações maiores. Não neste caso, que reputo simbólico, com o anúncio de uma contracção de 0,3% em cadeia nos últimos três meses do ano passado. O consenso generalizado é o de que Portugal vai entrar numa recessão cujo fim não é antecipável. Já começou, e o fundo do poço é uma incógnita, no tempo e na profundidade. Temos apenas algumas certezas tremendas: entramos, pela primeira vez na história, numa recessão, com a maior taxa de desemprego de que há memória estatística, oficialmente correspondente a mais de 600 mil desempregados. Do seu nível, quando batermos no fundo, nada sabemos, excepto que será uma tragédia nunca antes experimentada. A factura de uma década e meia perdida entrou agora a pagamento. Tudo, mas literalmente tudo o que o Governo tem feito, perante a ameaça do que se está já a concretizar, é tentar evitar a excacção das suas omissões ou acções desastrosas, as suas próprias ou as dos governos socialistas que o antecederam, com novas omissões ou acções desastrosas. 

O caso é, porém, mais grave. Esta crise será diferente. Não é uma crise cíclica. Trata-se do ponto de saturação de uma demorada evolução para o abismo, ilustrada por inúmeras curvas: a do défice externo, persistente desde 1995, a do desemprego, em alta desde 2000, salvo uma curta e inconsequente interrupção no princípio do lustro passado, a do endividamento do Estado, das famílias e das empresas, a da produção praticamente estagnada na última década, e em tendência longa para o zero - eis o nó do problema, o problema dos problemas. Vem já da década de 70 do século passado. Na esfera pública, o aumento insuportável do peso do Estado sobre a economia, com o crescimento constante da carga fiscal, da despesa social - representando actualmente mais de 20% do PIB - e da própria máquina das administrações, cuja folha de salários é um pouco mais de metade desse valor; recentemente, os juros, com um peso ainda da ordem dos 4% do PIB, mas em explosão. Parafraseando uma formulação sintética muito adequada do Pedro Braz Teixeira, em União Monetária, isto é, com câmbio fixo, a taxa de juro, o sintoma irrecusável da acumulação de todos os outros desequilíbrios, chega numa altura em que, em vez de ser alerta para uma necessária, atempada e por isso útil mudança de rumo capaz de evitar o naufrágio, torna-se, por tardio na sua manifestação, naquilo mesmo que leva ao fundo. A febre, quando se faz sentir, é tarde de mais. E mata. O sinal converte-se ele próprio no precipitante do colapso.

 Vivemos, até agora, numa ilusão - uma ilusão de prosperidade sem correspondência na realidade. E continuamos a viver. Tudo conspira para a laboriosa construção da nossa irrealidade quotidiana. Um Governo acossado, cujo único norte é a sua sobrevivência imediata. Uma oposição sem vozes com peso político capazes de dizer a verdade, pois a verdade - a bancarrota (a insolvência) generalizada em que entrámos - é demasiado insuportável: para si e para a sua audiência. Não creio que a gritante incongruência entre a dimensão e a natureza dos problemas que enfrentamos e a sua (não) inscrição no discurso público seja necessariamente o resultado de uma manha oportunista deliberada. A tendência natural dos actores políticos medíocres, os que nos sobram, é a demasiado humana tendência para reduzir o perigo à escala dos meios imediatamente disponíveis para o enfrentar. À falta de coragem, a confusão é um expediente vital. Algo disto tem a ver com o facto de os teólogos medievais considerarem a estupidez um pecado mortal. 

O que deveria, a meu ver, ser já claro nesta altura é que esta crise é uma crise de regime: a democracia inaugurada no pós-25 de Abril supunha um pacto de assistência social, com um nível crescente de cobertura de riscos e provimento de garantias, sem relação com as realidades fundamentais da geração de riqueza, que está condenado. A noção de direito social é, em si mesma, perigosamente equívoca. O Estado propõe-se garantir - e retira daí uma parcela considerável da sua legitimidade - o que não pode garantir, pois não está nas suas mãos cumprir. Os inúmeros défices que acumulámos e se transformaram em compromissos não honráveis são apenas a expressão contabilística de um modelo garantista de relação do Estado com os cidadãos, que se revelou impossível. O outro pilar da democracia, a opção europeia, consagrada na União Monetária, foi simultaneamente aquilo que possibilitou a ilusão de viabilidade do nosso modelo democrático e - sabêmo-lo agora - o que pesadamente inclinou à sua inviabilização. 

Esta crise não será, pois, como as outras. As relações entre o Estado e a sociedade, por um lado, e o Estado português e o seu espaço de inserção pós-imperial estão  - radicalmente - em causa. Queiramos, aceitêmo-lo, gostemos, ou não. A irrealidade em que vivemos é filha da impotência política em que vegetamos face à magnitude dos desafios. Na melhor das hipóteses, e até que aconteça qualquer coisa de não antecipável no actual quadro político e mental português, todas as mudanças que nos serão impostas serão apresentadas à sociedade e experimentadas por ela como privação face a um modelo normativo inquestionável. Há um défice - um défice de imaginação moral e de imaginação política - no fundo de tudo isto. Mas é da sua superação, em última instância, que depende a sobrevivência: de Portugal e da sua democracia.

Jorge Costa

Fev.2011

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