sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A cultura de direita em Portugal



 

“A direita portuguesa contemporânea: itinerários socioculturais  (1)
 
Em 1983 foi criado o jornal Semanário por Marcelo Rebelo de Sousa, Daniel Proença de Carvalho, José Miguel Júdice, João Lencastre, Vítor Cunha Rego, João Amaral, entre outros (2). Nos outdoors da campanha publicitária de lançamento surgiam, o que é significativo, os rostos dos fundadores desse jornal. Mais tarde, em 1988, O Independente usaria Winston Churchill nos seus outdoors promocionais, um outro sinal de que Portugal mudara – e muito – desde os tempos do PREC (3). O Semanário teria como repórter, que entrevistava em Paris figuras da «grande direita» europeia, sobretudo francesa (e não anglo-saxónica, note-se), um jovem chamado Paulo Sacadura Cabral Portas. Não era uma estreia: com uma notável precocidade, Paulo Portas já tinha trabalhado no jornal A Tarde, dirigido por Vítor Cunha Rego, ao lado de personalidades como Vasco Pulido Valente, António Barreto, Manuel de Lucena ou Francisco Saarsfield Cabral. Regressemos ao Semanário. Além da política, num tempo em que o jornalismo económico era muito incipiente – até por efeito colateral da incipiência da actividade privada nos sectores-chave da economia – o Semanário, a dada altura, a altura das privatizações e das Ofertas Públicas de Venda (OPV’s) (4), teria um papel importante na informação económica ou na orientação dos compradores de acções.

Mas, por muito descabido que pareça, o aspecto que aqui quero focar foi o surgimento, creio que logo no primeiro número do Semanário, de uma rubrica intitulada «Meia Desfeita», uma coluna social com fotografias, originalmente a preto e branco, de festas ou eventos mundanos em discotecas que renasciam das cinzas, como o Van Gogo, de Cascais, ou o Stone’s, de Lisboa, ou outras que viam a luz do dia – ou da noite… – nessa época, como o Banana Power, criado em 1981 por um conjunto de sócios liderados por Manecas Mocelek, boémio e empresário da vida nocturna que em 1975 partira para Angola e, depois, para o Brasil. Sendo uma discoteca  com restaurante e clube privado de acesso restrito, o Bananas, como era vulgarmente conhecido, com senhas de entrada a 150$00 para o comum dos mortais e cartão gold para os sócios, correspondia a um padrão cultural – e mental – que teria sido impensável no período revolucionário (5). A sua festa de inauguração foi, por assim dizer, o «Baile Patiño da democracia» ou o «25 de Novembro social» de certas elites e até de uma certa Weltanschauung, mais mundana e frívola. Assumir pública e abertamente, sem traumas nem complexos, a mundanidade e a frivolidade representava uma viragem muito sintomática relativamente aos tempos mais inflamados da revolução.



A par disso, a «Meia Desfeita» publicitava acontecimentos como corridas de touros ou raids hípicos, dando visibilidade a redes de sociabilidades desde sempre conotadas com a direita tradicionalista, marialva e ultramontana, ou aos exclusivos bailes de debutantes no Clube Portuense, estudados por Clara Maria Ferraz no âmbito de um trabalho académico sobre as estratégias endogâmicas das classes superiores (6). Para o público feminino, e não só, a rubrica «Meia Desfeita» era um dos principais atractivos do novo periódico, a ponto de, seguindo uma ideia de Marcelo Rebelo de Sousa, Vítor Cunha Rego e José Miguel Júdice, se ter transformado mais tarde numa revista autónoma, a cores, vendida com o próprio jornal, a Olá!, numa tentativa óbvia, porventura demasiado óbvia, de mimetização da sua congénere espanhola, a ¡Hola!. A dada altura, de algum declínio, muitas pessoas compravam o jornal por causa da revista Olá! e não o contrário. Na sua fase de agonia, que terminaria com o encerramento em 2009, o Semanário viria a ser comprado por uma personalidade hoje relativamente esquecida, Rui Teixeira Santos, um yuppie meteórico que também adquirira os armazéns Braz & Braz. 
 
 

Olá! Semanário

Poder-se-ia falar do papel que o Semanário, sobretudo a sua coluna «Mão Invisível», também teve – e lembremos que tudo isto coincide com o emergir do reaganismo e com o thatcherismo – na difusão do pensamento económico liberal ou neoliberal de uma geração que, de Jorge Braga de Macedo a Diogo Lucena, passando por António Borges ou pelos irmãos Pinto Barbosa, possuía ligações académicas aos Estados Unidos ou ao INSEAD de Fontainebleau e que começou um processo de internacionalização universitária «em rede» que era relativamente inédito na academia portuguesa. Quero concentrar-me no aspecto mundano do jornal e não o faço por um desejo de originalidade ou para fazer uma deambulação nostálgica por curiosidades esquecidas dos anos oitenta (7). Mas creio que, de facto, se não cairmos em exageros, a revista Olá!, pelo que significou historicamente, tem relevo cultural, sociológico e até ideológico.  Sempre existiram revistas sociais em Portugal e, desde 1976, Jacques Rodrigues publicava com grande êxito a Nova Gente. Simplesmente, a Nova Gente falava de actores da moda, muitos vindos do teatro de revista, de cantores populares e futebolistas, mas não tinha, creio que até deliberadamente, qualquer glamour. Na linha do que sempre seria a marca do Grupo Impala, era uma revista vocacionada para a classe média e para a classe média-baixa, de grande tiragem, tendo chegado aos 150.000 exemplares em finais dos anos oitenta.

No entanto, o facto de um jornal como o Semanário, que veiculava um projecto claramente de direita ou de centro-direita, protagonizado pelos principais ou mais influentes intelectuais da direita possível da altura, que davam a cara em outdoors, possuir uma rubrica em que apareciam eventos sociais das classes altas era uma novidade cujo efeito não quero sobrevalorizar, mas que merece ser realçado. É que o habitus, para usar um conhecido conceito que Bourdieu desenvolveu em várias obras, como La Distinction (1979), havia sido bruscamente interrompido quando as elites do salazarismo e do marcelismo debandaram para o Brasil ou para Espanha. Numa altura em que a estrutura de classes se reconfigurava e necessitava de alguma pavimentação simbólica, havia que renovar a exposição dos mecanismos de desigualdade social, expondo o «sistema de disposições reguladas» que fundam o habitus. Ora, a «Meia Desfeita» e a Olá! serviram esse propósito na perfeição e o seu sucesso mostrou que, para além da exposição pública da desigualdade, por parte dos emissores da mensagem, existia, por parte dos receptores ou destinatários da mesma, um «público» que aceitava a existência dessa estrutura de classes, que convivia bem com ela e que pretendia observar e acompanhar os movimentos dos seus protagonistas.  A criação de uma «esfera social», de que o Semanário fazia eco, era indício da recomposição da estrutura de classes no início da década de oitenta, feita naturalmente à base de uma mescla, nem sempre fácil, entre velhas e novas elites, que convergiam em eventos e negócios mas raramente se cruzavam em termos, por assim dizer, «endogâmicos» ou familiares.”[…]

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Jan.2014

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