«O Mundial pode tornar-se uma montra não da “potência emergente”, mas do potencial de rebelião popular que este país encerra.
Numa sociedade onde as disparidades, assimetrias e
injustiças sociais são tão flagrantes como no Brasil, é importante
compreender o recente ciclo de mobilizações de rua e a conflitualidade
social em curso no contexto pré-Copa 2014, tendo em atenção as grandes
mudanças que vêm ocorrendo neste país, por via dos governos do PT, e
suas implicações na estrutura social.
Deixando de parte a pequena e super-rica elite
económica (que, como sabemos é, de facto, quem domina), podemos dizer
que, quer a classe média, quer a classe trabalhadora brasileira passam
por uma profunda recomposição, a qual se reflete nas orientações,
subjetividades e dinâmicas de ação de diferentes segmentos dentro desses
conjuntos mais vastos. Dir-se-á que tanto a “classe média” como a
“classe trabalhadora” se subdividem internamente, cada uma delas, entre
um setor estabelecido e acomodado e um setor em movimento que se debate
hoje pela redefinição da sua condição e estatuto. A classe média
tradicional (estabelecida), constituida por grupos poderosos e de
elevado estatuto social, defende os seus privilégios, que deixa
transparecer através dos seus preconceitos, comportamentos arrogantes e
tiques de despotismo para com os mais humildes e pobres, aos quais, em
geral, nega o direito a terem direitos. Por isso erguem em seu redor
barreiras de opacidade e estigmas de todo o tipo. Mesmo aqueles que,
tendo saído da miséria, ambicionam ou reivindicam o acesso a bens de
consumo e a um estilo de vida mais digno, são rejeitados e olhados de
lado. Nas suas múltiplas obsessões, essa classe tem como principais
inimigos o PT (Partido dos Trabalhadores, de Lula da Silva) e as camadas
mais pobres e miseráveis que, com a ajuda do “petismo”, já frequentam
os Shoppings, já compraram carro, os seus filhos já frequentam a escola
até à universidade e começam a viajar de avião, coisa que este grupo
(habituado a recrutar aí as suas domésticas e serviçais) considera um
sacrilégio.
À sombra deste segmento, e, de certo modo, em disputa
com ele, encontra-se uma “classe média emergente” (uma nova camada da
classe trabalhadora, qualificada e com emprego formal), que descolou da
situação de miséria à custa dos programas sociais e do crescimento
económico, e que ganhou consciência de que pode, finalmente, aceder a
direitos e a uma condição social confortável. Segmentos jovens, que
trabalham, estudam, ou trabalham e estudam, vivendo nas periferias das
principais cidades, que aprenderam a socializar-se e se aproximaram das
novas modalidades de ativismo por via das redes sociais e da linguagem
da Internet. Trata-se de um precariado rebelde, mas por outro
lado sensível aos instintos consumistas e individualistas da classe
média. Foram sobretudo estes novos setores emergentes que, em junho de
2013, encheram as ruas e praças de centenas de cidades brasileiras
clamando por mais reformas, por mais transparência e o fim da corrupção,
por melhores transportes e qualidade de vida urbana, enfim por
verdadeiros sistemas de saúde e de educação públicas no Brasil. Essa foi
a primeira onda de rebeliões mobilizada não só contra os aumentos do
custo dos transportes urbanos mas contra os gastos sumptuosos então
anunciados para a organização dos grandes eventos (em especial o Mundial
de Futebol de 2014). É claro que nos momentos mais intensos de
contestação, esses movimentos foram “cavalgados” pelos grandes média e a
própria classe média estabelecida veio também para a rua gritar que “o
gigante acordou”, mas por motivos contrários, visto que a mudança que
pretendiam (e pretendem) é arredar o PT do poder para impor o seu
programa neoliberal puro e duro, e o regresso da velha ordem da
violência contra o povo e os ativistas (em geral acusados de
“vândalos”).
Se é verdade que este último segmento é parte da
classe trabalhadora, ele distingue-se, no entanto, por um lado, do
proletariado subalterno, que sobrevive à custa de programas como o bolsa
família, que permanence nas franjas da informalidade e próximo da
miséria, composto por varredores de lixo, pelo setor dos seguranças
privados, em regime de trabalho temporário (e subcontratado), domésticas
e empregados precarizados e pouco escolarizados dos mais diversos
serviços, e, por outro lado, distingue-se ainda da classe operária
tradicional, organizada, simbolizada pelos trabalhadores metalúrigicos
do ABC, onde o PT e a CUT têm a sua origem e mantêm as suas mais sólidas
bases de apoio.
O mesmo que se disse para as classes médias, pode
dizer-se da classe trabalhadora, também ela dividida entre uma facção
mais “acomodada” e outra mais “indignada” e rebelde. Desde o início
deste ciclo que o Brasil assistiu a grandes mudanças, principalmente as
promovidas pelos governos do PT. Ora, tais mudanças, independentemente
do seu impacto progressista na economia e na sociedade, deram lugar à
formação de novos setores profissionais e quadros dirigentes, com origem
no campo sindical, os quais corporizam o já referido segmento da classe
trabalhadora organizada e “acomodada”, não tanto porque seja
anti-reformista, mas porque se deixou “anestesiar” pelo poder (simbólico
e real) das instituições que dirige e onde obtêm algumas “benesses”,
reconhecimento e protagonismo que nunca tiveram. É contra esta camada
que a classe média estabelecida (sobretudo a que se concentra na região
de São Paulo) está crispada e inquieta porque foi ela que – apesar de
tudo – abriu novas perspetivas à classe trabalhadora e aos antigos
“caipiras” miseráveis, disponíveis para qualquer tarefa. Mas, por outro
lado, estes setores mais ou menos acomodados no aparelho de Estado, ou
ocupando lugares de relevo no sistema político, debatem-se com a
estagnação económica e os bloqueios face às promessas e expectativas que
criaram, muitas delas inscritas na própria constituição brasileira. O
sistema democrático do país desenvolveu desde o início da década de 1990
um conjunto de mecanismos de “blindagem” apoiados em alianças iníquas
entre partidos, e que, de certo modo, estabeleceu uma barreira
intransponível entre as reivindicações e necessidades das diversas
camadas da força de trabalho e da base da sociedade, ao mesmo tempo que
parece prisioneiro de forças ocultas, de interesses económicos
poderosos, dos mais diversos e sórdidos tráficos e redes de influência,
inclusive parecendo rendido ou impotente perante o poder esmagador dos
meios de comunicação social, antigos aliados desses interesses e pouco
disponíveis para a construção de um efetivo espaço público democrático
que dê expressão à pluralidade da sociedade brasileira em toda a sua
complexidade.
Apesar das divisões entre esses grupos e classes
sociais, o descontentamento pode virar-se contra um sistema que se
mostra incapaz de dar o salto em frente. E o cenário da Copa 2014 pode
servir de pretexto. É nesse sentido que nos últimos tempos se vêm
observando repetidos sinais de agitação de diversas camadas sociais
desprotegidas, como aconteceu em fevereiro passado com a greve
“selvagem” dos Garis (varredores de rua) no Rio de Janeiro,
que, passando por cima da direção sindical conseguiram negociar e obter
uma vitória clara numa série de reivindicações salariais e de condições
de trabalho, na mesma linha das grandes rebeliões operárias em 2012 no
Complexo de Suape (no Recife, NE do Brasil) envolvendo cerca de 40 mil
trabalhadores, ou dos protestos de junho de 2013 e, nas últimas semanas,
com várias situações de revolta e greves clandestinas no sector dos
transportes públicos em São Paulo (além de outros, como os
metalúrgicos), cujas ações incluíram diversos cortes de vias públicas e
lançaram o caos na cidade. Neste contexto, uma sondagem do passado dia
22 de maio revela que: para 90% dos paulistas há corrupção na
organização da Copa; 76% acham que o Brasil não está preparado; 45% são a
favor da copa, mas 43% são contra (e 10% indiferentes); e mais, 52% são
a favor dos protestos mais recentes (em junho de 2013 as manifestações
de então tiveram o apoio de 89% dos paulistas). Tudo isto faz crer que o
descontentamento pode ampliar-se com o início do Campeonato Mundial de
Futebol, e conjugar-se com iniciativas de outros grupos no terreno, como
os movimentos dos “trabalhadores sem teto” e ativistas anti-Copa, que
desde o ano passado vêm programando ações de protesto. O Mundial pode
tornar-se uma montra não da “potência emergente”, mas do potencial de
rebelião popular que este país encerra.»
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