segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Felizmente há a França

Crowds of French patriots line the Champs Elys...Image by The Library of Congress via Flickr



António Campos


Quando milhões de franceses se movimentaram para protestar contra o aumento da idade da reforma dos 60 para os 62 anos, não faltou quem lhes viesse com as ameaças do costume: Olhem que aqui ao lado, na Alemanha, é aos 67... Vejam lá, não refilem muito, senão ainda vos pode acontecer o mesmo... Vá lá, sejam realistas... Não queiram viver acima das vossas possibilidades...

Mas os franceses, honra lhes seja feita, são gente bem menos submissa que os alemães, e menos cegos à nudez do rei quando este calha de ir nu. E assim, quando um jornalista televisivo confrontou um manifestante anónimo com aquela argumentação, recebeu como resposta que a produtividade francesa era hoje o dobro do que há vinte anos, pelo que não havia nada de irrealista nas suas reivindicações.

Ora acontece que nos vinte anos anteriores a produtividade cresceu ainda mais - como não podia deixar de crescer dados os enormes e espantosos avanços tecnológicos a que temos assistido. Ou seja: entre 1970 e 2010, a produtividade mais que quadruplicou. Ou seja, para quem não está a ver o alcance deste facto: cada hora de trabalho humano vale hoje por quatro horas em 1970.

Este número poderá mudar se considerarmos factores de ponderação como o factor demográfico, num sentido, ou no sentido oposto a entrada para o grupo dos países desenvolvidos de outros que não faziam parte dele há 40 anos. Um facto subsiste: o Mundo está hoje muito mais rico do que estava há 40 anos. Se o ócio é um luxo e custa caro, somos suficientemente ricos para o pagar; e parece que em todo mundo ninguém entende isto a não ser os franceses.


Se abstraíssemos do politicamente possível e considerássemos apenas o objectivamente possível, podíamos ter hoje horários de trabalho de dez horas semanais; ou salários quatro vezes mais altos; ou reformas aos 45 anos; ou um qualquer compromisso que combinasse estes bens segundo a vontade de cada um e a vontade democraticamente expressa dos povos. Uma jornalista portuguesa de direita ironizava, não há muitas semanas, com aqueles "atrasados" que ainda sonham com a Suécia dos anos 70. Cometeu aqui um erro de diagnóstico: não sonhamos, exigimos; e não queremos a Suécia dos anos 70: queremos muito mais e muito melhor.

Se isto parece utópico, tal não se deve a qualquer impossibilidade objectiva, mas sim a uma impossibilidade política. Nem os mercados, nem nenhuma lei natural alguma vez determinaram a distribuição da riqueza ou do ócio. Hoje, como há dez mil anos, o melhor bocado cabe sempre ao mais forte. E se hoje a maioria dos seres humanos não recebe o dividendo que lhe cabe do progresso económico e tecnológico das últimas décadas, isto deve-se a um facto e a um facto só: há poder a mais nas mãos erradas e poder a menos nas certas.

Utopia? Não há nada de utópico em "exigir o impossível" quando o impossível só o é politicamente. Se queremos falar de utopia, falemos do discurso da inevitabilidade inaugurado por Reagan e Thatcher e repetido hoje, até à saturação, pelos economistas mediáticos, pelos medinacarreiras, pelos tonibleres e pelos "socialistas" da Terceira Via - todo ele um jogo perverso de utopias que visa convencer-nos que o impossível é possível e o possível impossível.

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De noreply@blogger.com (JOSÉ LUIZ SARMENTO)
Out 2010


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