quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A relação finança - fome

zoriah_kenya_famine_kakuma_refugee_camp_irc_in...Image by Zoriah via Flickr



António Campos


Retomando o tema do meu último post(a relação entre a penetração do capital financeiro e a crise alimentar mundial - ou, de forma sumária, o nexo finança-fome), gostaria agora de acrescentar algumas notas.

A primeira é para assinalar que, aquando da crise de 2008, o Nuno Teles discutiu já este tema nos Ladrões de Bicicletas.(...)

A segunda é para sublinhar que embora também existam causas “reais” para o aumento dos preços mundiais dos alimentos ao longo dos últimos anos, estas não explicam a crise de 2008, nem a que está actualmente iminente(...). Se estivéssemos perante um crescente desequilíbrio de longo prazo entre a procura e a oferta reais, correctamente antecipado pelos “mercados”, não haveria motivos razoáveis para o aumento dos preços ter sido tão brusco a partir de 2006-07, nem para estes terem decaído significativamente a partir de meados de 2008. Seria de esperar, isso sim, um aumento mais ou menos constante dos preços, eventualmente seguido da sua estabilização. Ora, aquilo a que assistimos é uma muito significativa tendência de aumento a par de uma forte e crescente volatilidade.

Existem efectivamente factores “reais” que têm tido algum impacto sobre a tendência – e a eles havemos de regressar numa próxima oportunidade. Mas o que explica a maior parte do aumento e da volatilidade nos últimos 4-5 anos é mesmo o afluxo massivo de capital financeiro com intenções especulativas. Como explica Jayati Ghosh neste artigo, esse afluxo deveu-se a um movimento, de proporções gigantescas, em busca de posições em activos baseados em mercadorias como o
ouro ou os produtos alimentares, no contexto do rebentamento de bolhas especulativas em sectores como o imobiliário. Por sua vez, a queda dos preços no final de 2008 deveu-se à necessidade de muitos destes investidores aumentarem os seus níveis de liquidez para fazer face às perdas ocorridas no auge da crise financeira. E voltamos agora a assistir à recuperação em pleno da tendência de aumento dos preços (e à iminência de crises de insegurança alimentar), à medida que estes investidores restabelecem progressivamente as suas posições, beneficiando das gigantescas injecções de liquidez que os bancos centrais proporcionaram ao sistema financeiro. Na ausência de novas regras, o crédito concedido não está a financiar a recuperação económica, mas sim a voltar a alimentar a especulação financeira.

Como também explica Ghosh no artigo referido em cima, para tudo isto contribuiu sobremaneira a Lei da Modernização dos Contratos de Futuros sobre Mercadorias, introduzida em 2000 nos EUA (onde se situa o epicentro do mercado mundial de produtos alimentares). Ao abolir os limites quantitativos sobre os contratos de futuros sobre mercadorias, permitir a entrada no mercado por parte de compradores e vendedores sem qualquer relação com a oferta e procura “reais” e eliminar todos os requisitos em matéria de supervisão, esta Lei veio na prática criar uma gigantesca e volátil procura “fictícia” no mercado de futuros – que se reflecte prontamente nos preços do mercado “spot” (aos quais estão sujeitos os vendedores e compradores “reais” de alimentos).

Desregulação, especulação, aumento e volatilidade dos preços dos alimentos. A fome é política.

adaptado nos segundo e terceiro parágrafo, com a devida vénia- Out.2010

(Alexandre Abreu) Do Ladrões de Bicicletas
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