terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Lembranças de mãe

The Good Mother (1988 film)Image via Wikipedia



António Campos


Nós, adultos, esquecemos que a mãe é pessoa e vemo-la como processo. Além do carinho e emotividade que unem uma criança com a sua progenitora, existem, de forma igualmente importante, os diversos estágios que atravessa uma mulher que acaba no seu caminho de mãe. O primeiro, é ser mulher, até aos nossos dias, não se inventou um ser que a substitua na estrutura hormonal e na configuração biológica necessária para dar vida a um bebé, amá-lo e amamentá-lo. Muito menos, a invenção da leveza do ser que caracteriza a relação mãe/criança. Não consigo esquecer a frase de um amigo ao me confidenciar a tristeza que tinha pela sua mãe ter ficado inválida: não sei o que fazer…apenas consigo chorar. A minha resposta foi rápida e directa: o que o meu amigo chora não é a doença da sua mãe, o que chora é a falta do mimo embelezado dos carinhos dela. Doravante, será o contrário: é a mãe que vai precisar dos cuidados do filho! Ele, incapaz de devolver essa elegância de mimos que na sua infância, a sua mãe lhe incutia, optou por nunca mais a visitar. É esta arte da fuga que os (as) filhos (as) adultos, configuram na relação ascendente/descendente, face a pais já anciões, no seio de uma sociedade que ensina (embora nem sempre se aprenda) a honrar pai e mãe. O hábito de contar, desabafar, ser aconselhado, fica inserido na mente do adulto maduro, como se fosse ainda um catraio. Mais difícil é, ainda, se a mãe passa a ser uma pessoa lenta, esquecida, tornando-se bebé ela própria ao regredir, como já referido sobre a criança velha.

Mas, se a mãe é um processo, é preciso sairmos da regressão para entrarmos na História. A rapariga casa com paixão – ou opta por uma união de facto – actualmente é igual. É dentro dessa paixão que o bebé é estruturado, até se converter num ser humano autónomo que precisa apenas da sua mãe, a quem pergunta o que fazer com os seus próprios filho. E a mãe, leal como sempre é com a sua criança, ouve, vê, sente e proporciona ideias. Conforme o caso. Existem mães que ignoram os filhos; por serem raras, não as vou referir. As lembranças de mãe passam por factos que a criança nunca entendeu e, como adulto, ignora e não partilha com a sua gestora. Foi por acaso que, no Diário de Vida de uma Senhora, li este pensamento: como devo fazer para a minha pequenada não ouvir a intimidade que tenho com o pai, os meus suspiros, os meus naturais gritos de prazer, a exibição da minha nudez que desejo mostrar ao meu homem para o manter vivoE se o meu pequeno entra ao quarto…??

Este é o problema que a maior parte dos adultos têm. Especialmente as mães. O corpo da mãe tem várias funções. A primeira, é ser ela própria e considerar qual a forma de manter a sedução para o seu homem. Uma mãe não é apenas uma entidade que amamenta a descendência: é também cônjuge ou parte integral de uma relação que permite que o seu estatuto maternal seja um processo de crescimento. Ocultar o corpo que deve também mostrar, é um dos dilemas da mulher. Dilema não contraditório, mas muito delicado. Diz esse Diário de Vida, que me ofereceram num meu trabalho de campo: estávamos a namoriscar a noite passada [sempre à noite, não sei porquê], entrou no quarto, de forma inesperada, o nosso filho mais velho; foi preciso esperar, dissimular, trocar lugares na cama…a correr. No entanto, penso que ele intuiu uma «aldrabice», ao comentar no dia seguinte se a mãe estava a brincar à Julia Roberts em Notting Hill, ou à Andie MacDowell em Quatro Casamentos e um Funeral, quando elas mostravam os seios, tal como eu ao meu homem.

Dilema de mãe, lembrança de mãe. Lembrança de mãe porque para o homem é natural mostrar a intimidade que tem a uma mulher: a sua ou outra qualquer. Não há lembrança no Diário de Vida da mãe ter tido outro homem além do pai. Porque a lembrança da mãe tem por base o sentido de pertença para a pessoa com ela comprometida e à qual se comprometera na saúde ou na doença, para toda a eternidade. Conceito de fidelidade ou lealdade, base também para toda a interacção com o mundo exterior. A lembrança que desenha melhor a mulher/mãe, é a entrega à sua casa e aos que nela vivem, sejam adultos ou crianças. Relação que passa à frente de qualquer outra, do cansaço do trabalho que lhe é impingido, pela forma económica actual de ser mulher e trabalhar para fazer a sua parte e manter o lar. Lembrança dupla da mãe: trabalho doméstico nas suas mãos, trabalho económico fora do lar mas para o lar e os seus. É a entrega infinita no seu processo de adquirir o estatuto de progenitora, apenas reflectido no mito religiosa de uma Nossa Senhora, das muitas que existem face ao grupo social. Uma Nossa Senhora a concorrer com o real progenitor.

O Diário tem muitas lembranças, desde a alimentação à intimidade sexual. No entanto, foi esta última que chamou a minha atenção. Raramente se fala da intimidade dos adultos da casa, principalmente das lembranças da mãe. Como diz um outro amigo: um calafrio percorre o meu corpo se penso na minha mãe a fazer as «porcarias» que eu faço com a minha ou com outras mulheres. A mãe não tem direito ao seu próprio divertimento e, muito menos, a falar dele, mesmo que a conversa seja pura, calma e directa. A mulher/mãe é apenas um processo de criar e amamentar. As roupas, o batom, as pinturas, as jóias, e até os namoros com outros homens podem acontecer porque são naturais. Um desejo natural de possuir figuras diferentes do eterno companheiro adquirido até à morte porque o Concilio Romano de Trento assim o definiu em 1539. Será que Alice Miller, em 1998, estava enganada ao escrever que A verdade libertar-te-á, ou em 1984 Não sereis conscientes da verdade. A traição da criança. Ou Melanie Klein no seu artigo de 1928: Estágios iniciais do conflito Edipiano, ou ainda Eduardo Sá, em 1995, ao falar das Más maneiras de sermos bons pais. Qual das duas ideias de Daniel Sampaio é mais importante, a de 1994, Inventem-se novos pais, ou a de 1998: Vivemos livres numa prisão.

Não posso concluir. A temática é extensa e demasiado importante num País Romano como Portugal. Mas, ficam na minha memória as confidências de outras lembranças das muitas mães que comigo falaram, para saberem como podiam ser explícitas com os mais novos, na explicação de que eram mulheres ao mesmo tempo que mães, porque os seus filhos não cresceriam se não entendessem essa diferença fundamental. Diferença que leva muitos a pensarem que um adulto deve ocultar a sua vida à criança. Especialmente, as lembranças da mãe, porque ser mãe é o processo de entrar como uma Nossa Senhora, ideia que a maior parte dos Cristãos Romanos, dos Koptos do Líbano, os de Arménia e dos Ortodoxos da Grécia e da Rússia, utilizam para definir a mulher. Nunca se pode esquecer que é mãe e não mulher, muito menos senhora, porque é apenas Sra. de… Tratamento injusto e desadequado como temos visto nos dias de guerra que vivemos, ao observamos serem elas  a procurar alimentos, enquanto eles aldrabavam com armas fracas para se sentirem masculinos a lutarem contra um inimigo configurado. A lembrança da mãe alimentar, levou imensas mulheres a passar em frente das balas. Como a minha própria mãe, a única que me visitou num campo de concentração, faz já trinta anos. Curou o meu sarampo, aconselhou-me nas doenças das netas, com discrição, e soube guardar distância silenciosa entre as suas ideias monárquicas e as minhas socialistas, que, sem saber, apoiou. Pelo que fico agradecido. Mais uma lembrança de mãe, porque o seu amor é incondicional.

  de Raul Iturra
Out.2010

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