segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A revelação do social através do quotidiano

O Cirquinho de LuísaImage via Wikipedia



António Campos


As rotas do quotidiano são caminhos denunciadores dos múltiplos meandros da vida social que escapam aos itinerários ou caminhos abstractos que algumas teorias sociológicas projectam sobre o social.

    A sociologia do quotidiano cultiva, deste modo, percursos de trespasse, no sentido figurativo que o termo envolve: isto é, de
«transgressão» em relação a formas de conhecimento sociológico alheias aos movimentos que quotidianamente ritmam as constâncias, variâncias e circunstâncias da vida social. É neste sentido que se pode dizer que a  sociologia do quotidiano dá um passo ao lado daquelas sociologias que confundem o que medem com a própria medida, o que vêem com o modo como vêem. Um passo ao lado, mas também um passo em frente, em relação a certas metodologias de aproximação ao social. Um passo em frente ao admitir-se que a vida quotidiana é um tecido de maneiras de ser ede estar, em vez de um conjunto de meros efeitos secundários de «causas estruturais». Neste passo em frente, as «maneiras de fazer» quotidianas são tão significantes quanto os resultados das práticas quotidianas, tantas vezes analisados à margem das retóricas e expressividades próprias da vida quotidiana.

Neste percurso de «trespasse», a sociologia do quotidiano corresponde mais a uma perspectiva metodológica do que a um esforço de teorização, a menos que se ressuscite a acepção antiga (de tradição grega) do termo «teoria», que significava «panorama», «descrição ordenada e compreensiva» - à margem das normas, leis, preceitos e regras que dominam os grandes quadros teóricos, de natureza mais explicativa. Em que consiste a perspectiva metodológica do quotidiano? Precisamente em aconchegar-se ao calor da intimidade da compreensão, fugindo das arrepiantes e gélidas explicações que, insensíveis às pluralidades disseminadas do vivido, erguem fronteiras entre os fenómenos, limitando ou anulando as suas relações recíprocas.

À sociologia do quotidiano interessa mais a mostração (do latim monstrare) do social do que a sua demonstração, geometrizada por quadros teóricos e conceitos (ou preconceitos) de partida, bem assim como por hipóteses rígidas que à força se procuram demonstrar num processo de duvidoso alcance em que o conhecimento explicativo se divorcia do conhecimento descritivo e compreensivo. A questão que portanto se coloca é a de saber se as «explicações» e «demonstrações» sociológicas ganham sentido heurístico ao menosprezarem os sentidos do viver quotidiano. Os conceitos e teorias devem entender-se como instrumentos metodológicos de investigação ao serviço da capacidade criadora de quem pesquisa(...).

Se há diferença entre uma lógica de demonstração e uma lógica de descobrimento, sem dúvida que a lógica da sociologia do quotidiano é a do descobrimento, da revelação - seja a revelação tomada no seu sentido místico ou fotográfico, como Simmel tão bem fez nos seus snap- shots, ou Velázquez e Caravaggio nas suas telas de tabernas. É gerador de comichões epistemológicas este modo retratista de olhar a realidade social? Pouco importa. O verdadeiro desafio que se coloca à sociologia do quotidiano é o de revelar a vida social na textura ou na espuma da «aparente» rotina de todos os dias, como a imagem latente de uma película fotográfica.

Definimos o quotidiano como uma rota de conhecimento. Quer isto dizer que o quotidiano não é uma parcela isolável do social. Com efeito, o quotidiano não pode ser caçado a laço quando cavalga diante de nós na exacta medida em que o quotidiano é o laço que nos permite«levantar caça» no real social, dando nós de inteligibilidade ao social.

A sociologia do quotidiano não se diferencia das outras sociologias pelas realidades. que privilegia nem pelo que diz sobre essas realidades, mas, simplesmente, pelo seu próprio dizer. Uma ingénua postura fenomenológica poderia arrastar-nos para a aceitação do objecto da sociologia da vida quotidiana como um objecto que lhe preexistisse quando, na verdade, as fronteiras científicas correspondem mais a perspectivas analíticas do que a terrenos de assimilação. Vem a propósito aquela história de Gordian, personagem de Voltaire, que estava persuadido de que, se um pavão-real pudesse falar, se vangloriaria de ter uma alma e diria que essa alma estaria na sua cauda. Ora bem, a «alma» da sociologia do quotidiano não está nos factos - os factos são o vistoso, a cauda do pavão. A alma da sociologia da vida quotidiana esno modo como se acerca desses factos, ditos quotidianos - o modo como os interroga e os revela.

In, Sociologia da vida quotidiana, de José Machado Pais –Imprensa de Ciências Sociais; 3ªed.,2007 (adaptado)

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