terça-feira, 22 de março de 2011

A mente do século XX e a genialidade do ensaio

Acto fundacional UPD. Fernando Savater.Image via Wikipedia




António Campos


O século XX, dito esquematicamente, foi dominado pela emergência de um conjunto de paradigmas que, em muitos casos ou situações, chegaram ao nosso tempo: a velocidade e a trepidação decorrentes dos transportes (a velocidade não só se extinguiu como foi transferida para o armamento e para as comunicações); a ascensão do feminismo (a condição da mulher, pelo nível de consequências, é um dos paradigmas dominantes que vai atravessar os nossos conceitos de família, as classes de consumidores, as atitudes políticas…); a nova era das massas, que marca a chegada das multidões ao voto político e ao consumo; a descoberta da teoria da relatividade, que iria desencadear novos mecanismos científicos; a ampla aceitação que obteve o marxismo, através da popularização dos chamados ideais de esquerda; as correntes filosóficas em torno da tolerância, do diálogo das civilizações e do existencialismo, em que ponto ficaram gigantes do pensamento como o Unamuno, Sartre ou Bertrand Russel. Acrescente-se que foi o século da comunicação, dos direitos humanos, da ecologia, do assassínio em massa e do repúdio das ditaduras.

“A arte do ensaio – ensaios sobre a cultura universal”, por Fernando Savater (Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2009) é um livro esplendoroso pela multiplicidade de desafios para que convoca o leitor, a propósito de comentários breves acerca de alguns dos mais significativos ensaios que se escreveram no século XX. Savater, que é um agitador cultural e um polemista de eleição, sensibiliza o leitor, logo no prólogo, para a importância do género do ensaio: este é experimentação, indagação provisória, incursão pouco ordenada, o autor é levado por intuições, conjecturas, dirige-se ao leitor como um companheiro e não como uma fonte categórica de sabedoria inatacável. O ensaio encerra a dúvida, não põe em causa que se abram outras portas para além das convicções de quem as expõe com liberdade e ciente da provisoriedade. O ensaísta está no lugar oposto do tratadista. Este é um intelectual que sabe de tudo aquilo de que fala, procura cativar o leitor para uma teoria, não dá margem para rebeldias a não ser, claro está, para uma argumentação que se lhe oponha, em bloco ou na categoria argumentativa. Fernando Savater vai exclusivamente à procura de ensaístas que marcaram o século XX e que se notabilizaram pela exploração audaz nos múltiplos domínios das ciências sociais e humanas e do conhecimento em geral.

Quem organiza uma obra destas não pode iludir afinidades e o autor não esconde a importância que tiveram na sua vida dois ensaístas notabilíssimos: Unamuno e Bertrand Russel. Ambos foram batalhadores, embora tenham seguido itinerários distintos. Unamuno guiava-se pelo sentimento trágico, pelas profundezas da agonia e até pela imortalidade. Era um génio espanhol que não se impressionava com os imperativos religiosos. Quando Unamuno rejeita a morte, o seu gesto não pode ser tomado como um sinal a pedir a vida eterna. Escreve Savater: “Unamuno insiste no facto de que o que apetece é continuar a viver tal como é e como quem é; não quer ser redimido das suas misérias e insuficiências. Da única coisa que aceita ver-se livre é do tédio e do medo da morte, que são ambos consequência directa do falseamento da vida pela obrigação de morrer”. Pode pois perceber-se o gesto impio deste pensador que veio pôr em causa os valores da vida eterna, instalando novos padrões morais, novas relações entre as ciências sociais, o grito de liberdade do homem face a um destino que parecia previamente traçado pela vontade religiosa. Bertrand Russell foi o outro representante da intelectualidade do século que marcou Savater. Russell partiu da matemática e chegou à filosofia.

Foi um dos grandes intelectuais do século XX (recebeu o Prémio Nobel da Literatura pelos seus ensaios, nunca publicou nem poesia nem ficção): pacifista, objector de consciência, anticonformista, depois acérrimo adversário do nazismo, filósofo, polemista contumaz, denunciou crimes, ditaduras intolerâncias, abraçou o ensaio com mordacidade e uma vivacidade intensa. Oiçamo-lo no seu belo discurso de aceitação do Nobel: “Se os homens fossem impelidos pelo seu próprio interesse, o que não acontece, exceptuando-se o caso de alguns santos, a totalidade da raça humana seria cooperante. Não haveria mais guerras, nem mais exércitos, nem mais armadas, nem mais bombas atómicas. Não haveria exércitos de propagandistas utilizados para envenenar as mentes do país A contra o país B, e reciprocamente do país B contra o país A… Tudo isto aconteceria muito rapidamente se os homens desejassem a sua própria felicidade como desejam a miséria dos seus vizinhos. Contudo, perguntar-me-eis: Qual é a utilidade de todos esses sonhos utópicos? Os moralistas já se ocupam deles para que não nos tornemos totalmente egoístas, e até não o sermos o milénio será impossível”.

O século XX viu desabrochar inúmeros ramos das ciências sociais e humanas. Viu intelectuais defender o nacionalismo e outros a exaltar a universalidade. Graças a sucessivos saltos tecnológicos, foi possível encontrar fórmulas que conduzissem à democratização do bem-estar. Promoveu-se a terceira cultura, generalizou-se o entretenimento, tirando uma ínfima parcela da humanidade, toda a gente está de acordo sobre os direitos humanos, o acesso à saúde, a educação básica gratuita, a segurança social sobretudo para quem mais precisa. Com a globalização, entreteceram-se culturas, bens e serviços, multiplicou-se o número de turistas. Os ensaístas debruçaram-se sobre a paz, o mal-estar da civilização, a condição humana, a doença mental, o acaso e a necessidade, o sagrado, o papel dos intelectuais, a nave espacial Terra. Savater não fala de tudo isto, limita-se a elogiar a arte do ensaio pelas possibilidades que nos confere estarmos todos muito mais próximos dos melhores criadores do conhecimento, mais aptos a comparar e a saborear os efeitos da complexidade sobre a nossa existência e a dos outros. Porquê esses ensaios são sempre peças abertas, “não representam a última palavra sobre os temas tratados, mas a primeira e uma nova forma de focar questões primordiais da época contemporânea”.

Beja Santos
Nov.2010

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