sexta-feira, 3 de maio de 2013

Convidar e obrigar, uma diferença importante



 

Há uma diferença importante que o pensamento totalitarista, mesmo entre quem não se reconhece como totalitarista, sistematicamente ignora. Falei disso no meu livro Filosofia em Directo, mas vale a pena voltar a sublinhá-la. Há uma grande diferença entre divulgar, estimular, promover e permitir que se conheça algo e obrigar as pessoas que o não querem a preferi-lo. Por exemplo, é meritório divulgar e dar a conhecer a ciência, como felizmente hoje o fazem tantos cientistas, portugueses e estrangeiros, em livros de divulgação e na Internet. Mas há uma grande diferença entre isso e obrigar as pessoas a comprar livros de ciência ou a estudar ciência ou a gostar de ciência. Se depois de termos feito o nosso trabalho de estimular as pessoas a gostar do que consideramos que é de valor, muitas pessoas, até mesmo a maioria, continuam a preferir outras coisas que consideramos frívolas e desprezíveis, é imperativo respeitar as suas escolhas. E é imperativo resistir à tentação de usar o poder do estado para impor aos outros aquilo que eles não valorizam.

Esta diferença deveria ser óbvia, mas não é. Daí que tantas pessoas fiquem convencidas de que, se eu tivesse o poder político, obrigaria toda a gente a estudar filosofia, e a estudar filosofia do modo peculiar que defendo e pratico. Mas eu jamais faria tal coisa. E não o faria porque respeito antes de tudo a própria liberdade e autonomia das pessoas; respeito as suas escolhas. E não caio na falácia de afirmar que quando as escolhas das pessoas não são aquilo que eu preferiria que fossem, não são escolhas genuínas. Parece-me um pouco excessivo, ou pelo menos uma coincidência estranha, que as escolhas dos outros só possam ser genuínas se coincidirem com as minhas.

Muitos intelectuais sofrem da ilusão de que só vale a pena viver a vida se as pessoas as viverem mais ou menos como eles mesmos as vivem. Isto é uma enorme falta de lucidez e de imaginação. Quem pensa deste modo é provinciano; ignora as muitas maneiras diferentes como as pessoas podem ter vidas compensadoras e estimulantes para elas. Além disso, revela falta de observação do mundo à sua volta -- o que, num intelectual, é curioso. Há 100 anos, muitas pessoas havia que não tinham pura e simplesmente acesso à cultura; nessa época, era razoável pensar que só por isso é que não se interessavam pela cultura. Mas hoje isto é falso na Europa, nos EUA e em países com níveis de vida muitíssimo elevados. Nestes países, as pessoas preferem futebol ou Rock'n'Roll ou cinema-espectáculo ou iPhones a ler filosofia ou ciência, e não é por falta de condições económicas que escolhem uma coisa em vez de outra. Na verdade hoje em dia dá-se o oposto: quem se interessa pela cultura precisa de menos dinheiro para viver do que quem se interessa principalmente pelas outras coisas. Contudo, muitos intelectuais continuam a clamar que só porque há uma conspiração capitalista é que as pessoas não são todas iguais a eles mesmos. Deveria ser óbvio que isto é um disparate.

Mas estas ideias não são apenas disparates de intelectuais com preconceitos contra os estilos de vida de que não gostam e que não compreendem. Estas ideias, algo fascistas e totalitaristas, são politicamente muitíssimo perigosas porque revelam uma maneira de pensar profundamente antidemocrática e contrária à liberdade. A maneira correcta de pensar em termos políticos, em termos da sociedade que em que estamos inseridos, é começar por reconhecer o direito inalienável de cada qual a ter as opiniões e gostos e estilos de vida que quiser. Se queremos conceber uma sociedade melhor, o esforço terá de ser no sentido de garantir que as pessoas com os mais diversos estilos de vida não se sintam discriminadas, sintam que têm o direito de viver precisamente como querem -- desde que não prejudiquem directamente e de modo inequívoco outras pessoas. Não demos sequer um passo na tentativa de conceber uma sociedade melhor ou na resolução dos nossos problemas sociais e políticos, quando começamos pelo ponto de partida errado. E esse ponto de partida errado é por onde tantos intelectuais começam: "as pessoas deviam ser todas como eu". A questão é que o não são; e mesmo que até fosse boa ideia que o fossem, o que temos a fazer, para podermos pensar com clareza sobre os nossos problemas políticos e sociais, é começar por reconhecer que as pessoas são muitíssimo diferentes umas das outras e que uma vida que para uma é estimulante e compensadora e fonte de realização, para outra é um enfado medonho. Se para os intelectuais se sentirem bem na sociedade isso implica que muitos milhões de pessoa terão de se sentir mal porque serão obrigadas, contra a sua vontade, a ler com enfado Thomas Mann todos os dias e a morrer de tédio ouvindo operetas, então mais vale que os intelectuais se sintam um bocadinho mal com a nossa sociedade. Se é errado obrigar-me a assistir a um jogo de futebol com 20 mil outras pessoas, o que para mim seria uma tortura mortal, é igualmente errado obrigar um fanático do futebol a ler um livro meu, se ele não o quiser ler.

A boa notícia é que os intelectuais não têm de se sentir mal. Nunca houve tanto dinheiro para a cultura, a ciência e o ensino como hoje em dia. Nunca foi tão fácil, a quem o quiser, tornar-se intelectual ou cientista ou filósofo. Os intelectuais gozam de uma liberdade e de condições de vida que os nossos antepassados não podiam nem sonhar. Não vejo razão para ficar tão aporrinhado com a sociedade contemporânea. Se a generalidade das pessoas prefere futebol e cerveja a filosofia e matemática, têm todo o direito a essa preferência. O que conta é haver muitas pessoas que prezam a filosofia, a matemática e os outros bens culturais.

Desidério Murcho, do Rerum Natura
Abril2012

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