“A venda dos jornais e dos jornalistas independentes será a última pazada
de terra na sepultura da democracia
EM 2012, 0 "NEW YORK TIMES" publicou uma extensa e fundamentada
investigação sobre a riqueza da família do então primeiro-ministro da China
Wen Jibao (no cargo de 2003 a 2013). A peça, uma das mais corajosas que li na
minha vida, não deixava pontas soltas. Nela se demonstrava uma riqueza
suspeita e meios ilícitos para a obter. A reportagem ganhou o Prémio Pulitzer
e contribuiu para restabelecer a reputação do "NY Times" depois dos
escândalos de plágios, conivências políticas (o caso da delação da agente da
CIA Valerie Plame) e reportagens inventadas. A peça sobre Wen Jibao trouxe ao
"NY Times" um inimigo poderoso, o Partido Comunista Chinês. O site do
jornal foi imediatamente bloqueado na China, e assim permanece. As pressões
diplomáticas da China foram brutais (e pouco diplomáticas) e o Departamento de
Estado teve de aguentar a ira dos chineses e as ameaças de retaliação. Os
jornalistas do "NY Times" têm tido grandes dificuldades em obter
vistos para a China. Wen Jibao tinha sido apontado pela revista
"Time" como um dos maiores responsáveis pela crise financeira internacional,
sendo um dos autores da política de concessão de crédito barato aos Estados
Unidos: "Se o crédito barato foi o crack da crise financeira — e foi — então
a China foi um dos maiores dealers." A China tornou-se o maior credor dos
Estados Unidos, com 1,7 triliões de dívida em dólares, ao mesmo tempo que
mantinha a moeda chinesa, renminbi, desvalorizada para favorecer o sector
exportador. Chen Guangbiao, um magnata chinês e uma das pessoas mais ricas da
China, propõe-se agora comprar o "NY Times" e garante que continuará
a perseguir o jornal até concretizar a aquisição . "Pretendo comprar o
'NY Times', e não tomem isto como uma anedota" Porquê? Porque tem muito
dinheiro. E, cito, porque "a tradição e o estilo do 'NY Times' fazem com
que seja muito difícil conseguir uma cobertura objetiva da China".
"Se pudéssemos comprar aquilo, daríamos uma volta ao tom do jornal. Por
isso tenho estado envolvido em discussões com outros investidores relacionadas
com esta aquisição." Chen fala já em "conduzir as necessárias
reformas no jornal, cujo fim último é tornar as reportagens mais autênticas e
objetivas, reconstruindo a sua credibilidade e influência". Depois de produzir
estas afirmações, Chen rematou que ia para os EUA tratar da compra do jornal.
Muitos acharam que estava a querer chamar as atenções, mas foi detetado por um
repórter do "Chinese Business News" num aeroporto de Nova Iorque
quatro dias depois. Chen, cuja fortuna se deve a uma companhia de reciclagem
de lixo (mão de obra miserável se encarrega de recolher 'material reciclável'
pelas ruas da China) chegou a vender "ar enlatado" a habitantes de
Pequim que queriam respirar sem smog. Chen escreveu sobre a pretensão:
"Enquanto o preço for razoável nada existe que não possa ser
comprado." Parece que a ideia lhe veio ao comprar um anúncio no "NY
Times", em 2012, que certificava a soberania de Pequim sobre as disputadas
ilhas Diaoyus, que o Japão reconhece como suas e a que chama Senkakus.
Este episódio grotesco é revelador. O jornalismo não está a salvo dos tubarões da finança nem do seu apetite aquisitivo. A companhia que detém o "NY Times" está cotada em Wall Street e tem uma capitalização de mercado de 2 mil milhões de dólares. Os jornais de papel, na sua agonia, tornaram-se presas fáceis de personalidades, entidades ou países sem tradição democrática e com ambições de dominação que decidem que tudo, pessoas e princípios, tem um preço. A ameaça de Chen não é uma leviandade. Embora a família Sulzberger, os fundadores e publishers do "NY Times", tenha declarado que não tem intenção de vender o jornal a quem quer que seja, a verdade é que numa fase de dificuldades económicas o jornal teve de recorrer a um empréstimo do magnata mexicano Carlos Slim, empréstimo que entretanto pagou. Arthur Ochs Sulzberger Jr., o amai chairman, tem o mérito de ter dinamizado os conteúdos digitais do jornal, ter conseguido criar um site que é o mais perfeito e visitado dos sites jornalísticos, e de ter conseguido rentabilizar os conteúdos. Até chegar aqui, o jornal atravessou vários desertos e esteve quase a sofrer a sorte do "Washington Post", da família Graham, entretanto comprado por Jeff Bezos da Amazon. A volatilidade do negócio dos jornais, em suporte papel ou digital, é brutal. Todos os dias a realidade muda e aparecem novas ameaças e concorrências. Nesta situação de fragilidade, convém não desprezar senhores como Chen, que tem atrás dele a vontade dos dirigentes chineses. Angola tem apetite igual em relação a jornais portugueses, com argumentos parecidos. A venda dos jornais e dos jornalistas independentes será a última pazada de terra na sepultura da democracia.”
Clara Ferreira Alves, revista expresso
Jan. 2014
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