sábado, 22 de fevereiro de 2014

Os nossos amigos chineses



A venda dos jornais e dos jornalistas independentes será a última pazada de terra na sepultura da democracia
EM 2012, 0 "NEW YORK TIMES" publicou uma extensa e fundamentada investiga­ção sobre a riqueza da família do então primeiro-ministro da China Wen Jibao (no cargo de 2003 a 2013). A peça, uma das mais corajosas que li na minha vida, não deixava pontas soltas. Nela se de­monstrava uma riqueza suspeita e meios ilícitos para a obter. A reportagem ga­nhou o Prémio Pulitzer e contribuiu para restabelecer a reputação do "NY Times" depois dos escândalos de plágios, conivências políticas (o caso da delação da agente da CIA Valerie Plame) e repor­tagens inventadas. A peça sobre Wen Jibao trouxe ao "NY Times" um inimigo poderoso, o Partido Comunista Chinês. O site do jornal foi imediatamente bloquea­do na China, e assim permanece. As pressões diplomáticas da China foram brutais (e pouco diplomáticas) e o Depar­tamento de Estado teve de aguentar a ira dos chineses e as ameaças de retaliação. Os jornalistas do "NY Times" têm tido grandes dificuldades em obter vistos para a China. Wen Jibao tinha sido apontado pela revista "Time" como um dos maiores responsáveis pela crise financeira inter­nacional, sendo um dos autores da política de concessão de crédito barato aos Estados Unidos: "Se o crédito barato foi o crack da crise financeira — e foi — então a China foi um dos maiores dealers." A China tornou-se o maior credor dos Estados Unidos, com 1,7 triliões de dívida em dólares, ao mesmo tempo que mantinha a moeda chinesa, renminbi, desvalorizada para favorecer o sector exportador. Chen Guangbiao, um magnata chinês e uma das pessoas mais ricas da China, propõe-se agora comprar o "NY Ti­mes" e garante que continuará a perse­guir o jornal até concretizar a aquisi­ção . "Pretendo comprar o 'NY Times', e não tomem isto como uma anedota" Porquê? Porque tem muito dinheiro. E, cito, porque "a tradição e o estilo do 'NY Times' fazem com que seja muito difícil conseguir uma cobertura objetiva da China". "Se pudéssemos comprar aquilo, daríamos uma volta ao tom do jornal. Por isso tenho estado envolvido em discus­sões com outros investidores relaciona­das com esta aquisição." Chen fala já em "conduzir as necessárias reformas no jornal, cujo fim último é tornar as reporta­gens mais autênticas e objetivas, recons­truindo a sua credibilidade e influência". Depois de produzir estas afirmações, Chen rematou que ia para os EUA tratar da compra do jornal. Muitos acharam que estava a querer chamar as atenções, mas foi detetado por um repórter do "Chinese Business News" num aeroporto de Nova Iorque quatro dias depois. Chen, cuja fortuna se deve a uma compa­nhia de reciclagem de lixo (mão de obra miserável se encarrega de recolher 'material reciclável' pelas ruas da China) chegou a vender "ar enlatado" a habitan­tes de Pequim que queriam respirar sem smog. Chen escreveu sobre a pretensão: "Enquanto o preço for razoável nada existe que não possa ser comprado." Parece que a ideia lhe veio ao comprar um anúncio no "NY Times", em 2012, que certificava a soberania de Pequim sobre as disputadas ilhas Diaoyus, que o Japão reconhece como suas e a que chama Senkakus.
 
Este episódio grotesco é revelador. O jornalismo não está a salvo dos tubarões da finança nem do seu apetite aquisitivo. A companhia que detém o "NY Times" está cotada em Wall Street e tem uma capitalização de mercado de 2 mil mi­lhões de dólares. Os jornais de papel, na sua agonia, tornaram-se presas fáceis de personalidades, entidades ou países sem tradição democrática e com ambições de dominação que decidem que tudo, pes­soas e princípios, tem um preço. A amea­ça de Chen não é uma leviandade. Embo­ra a família Sulzberger, os fundadores e publishers do "NY Times", tenha declara­do que não tem intenção de vender o jornal a quem quer que seja, a verdade é que numa fase de dificuldades económi­cas o jornal teve de recorrer a um em­préstimo do magnata mexicano Carlos Slim, empréstimo que entretanto pagou. Arthur Ochs Sulzberger Jr., o amai chairman, tem o mérito de ter dinamizado os conteúdos digitais do jornal, ter consegui­do criar um site que é o mais perfeito e visitado dos sites jornalísticos, e de ter conseguido rentabilizar os conteúdos. Até chegar aqui, o jornal atravessou vários desertos e esteve quase a sofrer a sorte do "Washington Post", da família Graham, entretanto comprado por Jeff Bezos da Amazon. A volatilidade do negócio dos jornais, em suporte papel ou digital, é brutal. Todos os dias a realidade muda e aparecem novas ameaças e concorrências. Nesta situação de fragilida­de, convém não desprezar senhores como Chen, que tem atrás dele a vontade dos dirigentes chineses. Angola tem apetite igual em relação a jornais portu­gueses, com argumentos parecidos. A venda dos jornais e dos jornalistas inde­pendentes será a última pazada de terra na sepultura da democracia.”

Clara Ferreira Alves, revista expresso
Jan. 2014

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