sexta-feira, 4 de abril de 2014

Geopolítica do salto de esquis


"A questão do respeito pelos direitos humanos e das regulamentações ambientais, quando colocada a um mestre-de-obras que trabalha nas instalações olímpicas, vale-nos um olhar incrédulo, de tal forma o tema lhe parece extravagante. No essencial, é isto que nos respondem: se tivesse sido necessário começar por erradicar a corrupção sistémica e consultar a população a cada decisão administrativa, as fundações da pista de patinagem ainda hoje mal estariam secas. «O Comité Internacional Olímpico suspendeu qualquer iniciativa democrática quando caucionou a realização de obras colossais num tempo recorde!», confirma Fedor Lukianov, chefe de redacção da revista de diplomacia Russia in Global Affairs«A partir desse momento, por natureza, o que se passa em Sochi não poderia ser, em caso algum, um teste para o Estado de direito no nosso país.»
Que importam as críticas: o facto de o país respeitar os compromissos assumidos permitiu ao presidente Vladimir Putin vencer uma primeira batalha simbólica. A Rússia consolida o seu estatuto de Estado próspero e estruturado, numa encenação totalmente contrastante com a humilhação suscitada pela sua falência, duas décadas antes. A destruição das instituições e dos serviços públicos diligenciada pelo Ocidente, a predação dos oligarcas aquando das privatizações, o colapso da produção – uma diminuição de 40% entre 1991 e 1998 – haviam generalizado a sensação de desclassificação. Esta traduziu-se, em particular, pela convicção de que a nação nunca mais teria capacidade para acolher uma competição internacional.

Tudo isto aumentou ainda mais, portanto, o orgulho de se ver a chama olímpica entrar no recinto do Fisht Stadium, em Sochi. «Com a glasnost [transparência] e com a passagem do modelo colectivista para a economia de mercado, o Estado russo atravessou, com Mikhail Gorbachov e depois com Boris Ieltsin, períodos revolucionários aos quais tinha de suceder um período de estabilização», expõe o analista político Konstantin von Eggert. «Ora, é precisamente esta estabilidade que Putin e os Jogos de Sochi representam.»
O símbolo projectado pelos Jogos é também o de um Estado com uma soberania reafirmada. O enterro do projecto soviético teve como corolário a perda de influência da Rússia nos seus antigos satélites. Este traumatismo foi agravado pela separação tchetchena e, a seguir, pelas «revoluções coloridas» que atingiram a Geórgia em 2003, a Ucrânia em 2004, o Quirguizistão em 2005… A campanha militar vitoriosa de Agosto de 2008 contra a Geórgia, vivida pela população como um conflito por procuração contra os Estados Unidos, já permitira erguer de novo a bandeira. Em 2014, a reafirmação da presença russa nesta região insubmissa reveste-se de uma dimensão geopolítica que é ilustrada pelo percurso feito pela chama olímpica: esta deve ser exibida no pólo Norte, no espaço e até nas ilhas Sacalinas, palco de uma disputa territorial com o Japão. «Esta demonstração de soberania ilustra o quanto Putin se identifica, na esteira de Ivan o Terrível, com um grande reunificador do povo russo», analisa Serguei Medvedev, professor de Política Internacional na Escola de Altos Estudos em Ciências Económicas de Moscovo (HSE).

O facto de a chama olímpica terminar o seu périplo em Sochi corresponde, uma vez mais, a um objectivo simbólico preciso: teatralizar o controlo de uma região sujeita aos sobressaltos das lutas armadas no Cáucaso. Enquanto os atentados ocorridos no metro de Moscovo em Março de 2010 (39 mortos) e no aeroporto de Domodedovo em Janeiro de 2011 (36 mortos), reivindicados pelo líder rebelde tchetcheno e fundador do emirado do Cáucaso, Doku Umarov, deixaram profundas cicatrizes, a realização dos Jogos confere crédito à imagem de um país seguro, capaz de garantir a inviolabilidade do seu território. Uma aposta ainda mais arriscada porque Umarov fez um apelo, em Julho de 2013, para se «impedir por todos os meios» a realização dos Jogos e porque, no fim de Dezembro, dois atentados-suicidas na cidade de Volgogrado, no Norte do Cáucaso, fizeram 34 mortos…

Desafio aos Estados Unidos

«Sochi é psicoterapia e não Jogos!», jura Alexei Mukhine, ao volante do seu 4x4, lançado a grande velocidade nas amplas artérias da capital. Para o director-geral do Centro de Informação Política, a passagem da Rússia para a órbita ocidental aniquilou as especificidades do Estado russo, «ao ponto de hoje já não sabermos quem somos». Com efeito, os Jogos Olímpicos ocorrem num momento de pleno questionamento da Rússia em relação a si mesma. «Somos um país jovem, no qual, desde 1991, tudo é novo: a composição étnica, a organização política, as bases económicas, a Constituição… Para os russos, isto implica definir os contornos de uma nova identidade que não seja comunista – e é difícil», explica Konstantin von Eggert. A isto junta-se uma nostalgia latente do império e uma sensação de excepcionalidade que é particularmente viva. Todos estes elementos formam um terreno favorável ao ressurgimento de um nacionalismo de que o presidente, desde que foi reeleito para dirigir o país, em Março de 2012, se apresenta como arauto.
«Putin começou por ser o grande curandeiro das feridas nacionais, capaz de reconstituir a estrutura do Estado. Depois quis tornar-se o seu grande modernizador. Esta sequência resultou num fracasso, porque a presidência de Dmitri Medvedev, de 2008 a 2012, não trouxe a abertura democrática esperada. Doravante, Putin emerge como um dirigente nacional, amplamente apoiado pela opinião pública», observa Andrei Melville, professor na HSE. Uma estratégia que demonstra o reforço de um discurso que celebra de bom grado a singularidade do modelo e da identidade russa. «É um verdadeiro fenómeno político», observa o professor. «E os Jogos de Sochi participam desta tendência.»
Neste contexto, os XXII Jogos Olímpicos de Inverno são de facto a oportunidade ideal para veicular uma mensagem: o regresso da «Grande Rússia», uma nação respeitável (o que explica o indulto concedido ao oligarca Mikhail Khodorkovski e a amnistia das duas Pussy Riot, Nadejda Tolokonnikova e Maria Alekhina, em Dezembro), próspera e influente, a um mundo que Putin designa, desde o discurso de Munique de 2007, como «multipolar». Ao contrário da China que, depois dos Jogos Olímpicos de 2008, cuidou de se manter retirada dos assuntos do mundo, a Rússia quer desempenhar os papéis principais no concerto das nações oferecendo uma solução alternativa credível para a liderança americana e, em geral, ocidental.

Este desejo de rivalidade foi várias vezes manifestado pela diplomacia russa: a guerra relâmpago contra a Geórgia em 2008; o progresso registado pelo projecto de gasoduto russo-italiano South Stream (que contorna a Ucrânia), em prejuízo do seu concorrente Nabucco, apoiado pela União Europeia e pelos Estados Unidos; o êxito da renegociação sobre o nuclear iraniano, em Novembro de 2013, fruto de uma intensa actividade de lóbi de Putin para promover o diálogo em vez do uso da força; a resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a destruição do arsenal químico sírio [1]; e, mais recentemente ainda, a assinatura pela Ucrânia de acordos económicos com Moscovo, em vez de um acordo de associação com Bruxelas [2].
O desporto, elemento primordial da matriz nacional desde a era comunista, serve também este objectivo:«Os Jogos perpetuam esta ideia de grandeza associada aos dois impérios – a dinastia dos Romanov e o sovietismo – que moldaram a identidade do país», analisa Konstantin von Eggert. Traço de união entre um passado magnificado e um futuro que se espera ser brilhante, o desporto prolonga, com fortes despesas sumptuárias, a escrita da narrativa nacional.

Se estes Jogos decorrerem sem incidentes e se os atletas russos se distinguirem por bons desempenhos, então eles permitirão a Putin aumentar o seu prestígio no xadrez político interno. «Será uma estrondosa vitória pessoal para ele, que quer deixar na história a marca de um chefe de Estado capaz de levar a bom porto a transição da Rússia pós-comunista para a modernidade», nota Arnaud Dubien, director do Observatório Franco-Russo em Moscovo. Uma trégua de curta duração, prevêem no entanto muitos comentadores, tantos são os desafios que se multiplicam no horizonte: uma popularidade em queda («apenas» 60% de opiniões positivas, contra 80% em 2008); a necessidade de abrir o país à imigração profissional, apesar das renitências da opinião pública; a pacificação do Daguestão e, sobretudo, um crescimento anual decepcionante, estimado pelo Ministério das Finanças em apenas 1,4% em 2013 e em cerca de 2,5% até 2030. Estas previsões explicam-se pela diminuição dos investimentos directos estrangeiros e pela fragilidade do comércio externo, acentuadas por um claro declínio demográfico: povoada com 148,7 milhões de habitantes em 1991, a Rússia já só tem 142,5 milhões em 2013. Um número que pode ainda descer para 128 milhões até 2030 [3].

Estas considerações não desencorajam minimamente Putin, que deseja prosseguir uma política de renovação das infra-estruturas do país, notoriamente subdesenvolvidas, multiplicando os compromissos internacionais. «Desde a celebração do tricentenário de São Petersburgo, em 2003, todos os grandes acontecimentos constituíram um pretexto para o desenvolvimento da Rússia», observa Fedor Lukianov. O concurso da Eurovisão em Moscovo em 2009, a 24.ª Cimeira do Fórum de Cooperação Económica Ásia-Pacífico em Vladivostok em 2012, a Cimeira do G20 em São Petersburgo em 2013, os Campeonatos do Mundo de Natação em Kazan em 2015 e, claro, em 2018, o Campeonato do Mundo de Futebol, durante o qual uma dezena de cidades – entre as quais Sochi, Kaliningrado, Moscovo e Volgogrado – irá receber os jogos: todas estas iniciativas são pretextos para o desenvolvimento de um território tão vasto como trinta e três vezes a França."[...]

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Fev. 2014

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