"Como hábito de falar incessantemente reproduz valores e reforça
competição. Por que diálogos terapêuticos, ou silêncio, podem ser
alternativas.
Após quase três meses de ausência, resolvi retomar a coluna Outro Viver
tratando justamente disso, o silêncio. Em um mundo cada dia mais
frenético, cheio de palavras, imagens, manuais e aplicativos, qual o
valor do vazio? Pra tudo temos opiniões, explicações, justificativas,
conceitos. Nossa mente não para nunca. Nem um segundo de descanso. Mas o
que desses tantos pensamentos me pertence realmente?
“Acredito que 4/5 da conversa humana, de todos, no mundo todo, o
tempo todo, é conversa fiada, o passatempo fundamental da humanidade.”
Ao ler esta frase do psicanalista José Angelo Gaiarsa, no livro Reich – 1980,
logo busquei inúmeros contrapontos. Mas acabei cedendo e compreendendo
como utilizamos a fala para resistir às mudanças. Quando me proponho a
observar mais profundamente o meu sistema de defesa, percebo que ao
desobedecer meus velhos padrões de comportamento, o meu ego logo se
inflama e faz todo o possível para sabotar minhas iniciativas e fazer
com que eu volte ao normal dizendo: “mamãe tinha razão”.
Segundo Gaiarsa, a conversa fiada existe para impedir a veracidade, a
intimidade, a emoção, o individual, o sentir. “Só é meu o aqui-agora,
só nele posso fazer, acontecer, existir, preparar. Se perco meus
momentos, muitos deles, no papo vazio, estou irrealizando-me o tempo
todo e deixando o sistema se reforçar cada vez mais, em mim e no meu
inteligente interlocutor. Não raro, estamos os dois falando como mudar o
sistema, sem perceber que esta discussão é parte-legítima do sistema.” O escritor explica, de forma bastante direta e clara, que a conversa
fiada se compõe de exibição de excelência, de delírio jurídico e de
fofoca. “As pessoas falam muito de quanto são boas, capazes, bem
sucedidas, espertas, inteligentes, cumpridoras de seus deveres. Entram
quase todas e quase sempre na exibição de poderio. Quem é melhor do que
quem? Eu ou você? Meu time ou seu time? Minha casa ou sua casa? Meu
carro ou seu carro? E este fenômeno independe de regime social ou
econômico. Gosto de pensar que a única maneira capaz de impedir a luta
de cada um contra todos (e o domínio dos poderosos) é a cooperação. Não
se trata de ser bom, generoso, compreensivo. Se trata de aprender a
cooperar, a trabalhar/funcionar juntos. O papo vazio serve demais à
divisão, à oposição e à luta de cada um contra cada um e ao
enfraquecimento de todos.”
Sobre o delírio jurídico da humanidade, Gaiarsa diz que ele
responde, com certeza, por mais um tempo grande do papo vazio. As
pessoas ficam, para fora (com o outro), ou para dentro (consigo mesmas),
tentando explicar, justificar e provar que seus motivos e razões são
legítimos – e que legitimam o que fazem. Legitimam, principalmente, tudo
o que não fazem. Eu sei que devia, mas… O complemento desta
interminável arenga jurídica, pela qual me protejo de sanções sociais
hipotéticas e ameaçadoras, é o constante procurar provar/dizer quem é o
culpado e quem é que devia. “A busca do culpado é nosso machado de pedra cultural. A busca do
bode expiatório é tática para não resolver. Como parte mais do que
importante do delírio jurídico da humanidade, presente no papo vazio,
temos as queixas, queixumes, lamentos, protestos e críticas, acusações e
denúncias. Tudo o que sofri para ser, ou para continuar sendo, um
cidadão honesto e respeitável, e tudo o que eu não recebi de volta por
ser um bom filho, bom pai/mãe, bom profissional. A vítima é muito
atuante em um número considerável de pessoas.”
Mas ainda tem uma outra fração importante do tempo do papo vazio: a
fofoca nossa de cada dia. Se até aqui você ainda não se identificou,
duvido que nunca tenha praticado o falar de tudo o que o outro é, e que
não devia ser, a crítica a todo transgressor das normas que se têm como
estabelecidas, nos pequenos grupos onde cada um vive. Na verdade, na
visão de Gaiarsa, esta é uma agressão ao outro que faz de jeito
diferente do meu. “Em termos familiares, esta fração de conversa vazia é
relato de projeções que cada um faz, no outro, de todas aquelas
características pessoais que, em seu pequeno mundo, não se deve ter.
Entre a exibição de muitas virtudes pessoais, e a condenação dos vícios
dos outros existe, como é fácil imaginar, uma secreta harmonia e uma
profunda complementação. Projetar quer dizer: acreditar que o outro é
capaz de fazer aquilo que secreta ou conscientemente eu também gostaria
de ser capaz de fazer”."[...]
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