«A radicalização de opositores e chavistas, num
cenário de transformações sociais, ineficiência e sabotagem. O papel de
Washinton. A tentativa de um pacto.
Na Venezuela atual, abastecer um tanque de combustível de
aproximadamente 70 litros custa tão pouco quanto uma garrafa de meio
litro de água mineral ou um cigarro avulso: são apenas cinco bolos
(bolívares fortes). Na ultima semana de março o dólar paralelo oscilava
em torno de 52 bolívares, nove vezes mais que o oficial. Semanas antes,
a moeda norte-americana alcançara a astronômica cifra de 100 bolívares.
Esta distorção dos preços é o indício de uma economia deformada, que
já não funciona mais como economia capitalista tradicional (dominada por
monopólios privados) e parece encontrar-se a meio caminho da economia
chamada socialista (monopólio estatal), com as tensões e contradições
que supõe semelhante transito. Em suma, a economia é o cenário de uma
aguda luta de classes, no sentido mais tradicional do conceito.
Para enxergar uma destas distorções, basta caminhar os diversos
bairros de uma cidade de um milhão e meio de habitantes, como
Barquisimeto, capital do estado ocidental de Lara. Nos bairros populares
veem-se filas nas lojas e supermercados — de diferentes extensões, mas
quase que diárias. Nos bairros da classe média alta, como Fundalara, não
se veem filas e o comércio parece estar bem abastecido. As famílias
saem com pequenas sacolas de alimentos, enquanto nos bairros populares
as donas de casa transportam grandes pacotes para suprir suas famílias
numerosas.
A principal diferença é que nos bairros ricos podem ser vistos, com a
mesma frequência com que se veem as filas nos bairros populares,
manifestações de estudantes que portam bandeiras venezuelanas, sem que
ninguém os incomode, ocorrendo um ou outro buzinaço de apoio. Apenas na última semana de março, tanto as filas como os protestos começaram a diminuir.
Empate catastrófico
A imagem de uma sociedade divida em partes quase iguais, e além
disso polarizada, parece ser o cenário mais próximo da realidade. As
eleições presidenciais que levaram Nicolas Maduro à presidência, há
quase um ano, refletiram ambos os fatos, ao registrarem uma diferença de
apenas 1,5% dos votos, entre o atual presidente e o candidato da
oposição Henrique Capriles.
A polarização social tem também uma leitura territorial, que pode
ajudar a explicar a situação atual. Nos estados de Zulia, Táchira e
Mérida, entre outros, ganhou a oposição. É a região de fronteira com a
Colômbia. Lá, os protestos criararam, durante o mês de fevereiro, um
cenário de “zona liberada”. Na capital do Táchira, San Cristóbal, a
universidade pública foi incendiada por manifestantes, com
clara complacência das autoridades estaduais e municipais, ligadas à
oposição.
Os partidários do governo denunciam participação, nos protestos, de
ex-paramilitares colombianos, aliados ao presidente Álvaro Uribe. Falam,
de modo particular, nas ameaças seletivas a militantes chavistas. A
oposição, por sua vez, acusa o governo de maus-tratos e tortura de
detentos. Ambos os fatos parecem plausíveis, embora não haja provas
contundentes que possam corroborar a tese.
Dois fatos parecem evidentes: que a repressão do Estado matou vários
manifestantes; e ambos os grupos — tanto oposição, quanto chavistas —
usam armas de fogo. O jornalista Aram Aharoninan, ex-diretor da Telesur,
relata que das quarenta mortes, entre 12 de Fevereiro e o final de
março, vinte e duas foram “assassinatos de líderes da base bolivariana
[chavista], alvejados pelas forças paramilitares colombianas – aliados
mercenários da burguesia venezuelana” (Rebelión,1 de Abril 2014).
Quando o número de mortos era 31, a Procuradoria Geral da Republica
divulgou estatísticas segundo as quais, entre os 461 feridos nas
manifestações, 143 eram policiais. Vários soldados foram mortos. Quase
duas mil pessoas foram presas, sendo que apenas 168 ainda permanecem
atrás das grades.
Durante o mês de fevereiro, a Venezuela foi palco de uma dupla
escalada de tensões, e de uma tentativa de negociação. Avançou a
extrema-direita, liderada por Leopoldo López (agora preso) e pela
deputada Corina Machado, mas não acompanhada pela Mesa da Unidade
Democrática (MUD), liderada por Capriles. Este opositor afirmava, em
plena crise de desestabilização do regime bolivariano, que “o único
caminho possível seria o da via eleitoral”.
A ofensiva da extrema-direita foi confrontada pela emergência das forças chavistas, em particular os motorizados – milhares
de militantes em motocicletas, que constiuem uma das forças mais
organizadas e ativas do oficialismo. Para tentar detê-los, a oposição
estendeu fios de aço nas ruas, à altura de suas cabeças.
Até mesmo o presidente Nicolas Maduro apoiou publicamente o surgimento dos motorizados
informando que cinco deles haviam sido mortos por franco-atiradores.
“Este golpe de Estado continuado que já está derrotado, mas que ainda
segue provocando danos contra pessoas, levou ao surgimento dos motorizados, como um ator para o bem do país. Agora vocês estão visíveis, – enfatizou o presidente – já não serão mais estigmatizados. Os motorizados atuam pela paz, e neste momento estão derrotando um golpe de Estado”. (El Nacional, 13 de março de 2014)
A má economia
Na comunidade Abya Yala, no entorno de Barinas, cujas terras tão
secas quanto férteis esperam ansiosamente o início da estação das
chuvas, Ignacio e Edis detalham como trabalham na produção de alimentos
sem agrotóxicos, preferindo o controle orgânico de pragas. Produtores de
hortaliças e frutas, suínos e aves, levam as mercadorias para serem
comercializadas na Cooperativa de Autogestão Comunitária, integrada a
uma das maiores redes de abastecimento de cooperativas, Cecosesola.
Ignacio, veterinário e produtor uruguaio que está radicado há oito
anos na Venezuela, é membro de uma cooperativa nas redondezas, que se
destaca por uma forte produção de mandioca orgânica. Mora em uma
cooperativa da Reforma Agrária, também perto da capital do estado.
Deslumbrou-se com a terra, em que se pode cultivar ao longo dos doze
meses do ano, enquanto no Uruguai somente é possível durante cinco
meses. Embora continue a apoiar o processo bolivariano, observa que “a
grande maioria dos beneficiários da reforma agrária não trabalha na
terra; muitos foram até mesmo embora”.
Ele sabe do que fala. E tem perfeita consciência de que está tocando
em um ponto central da economia bolivariana. Seu relato em pequena
escala é reforçado pelas macro-estatísticas: 56,2% de inflação em 2013,
déficit fiscal próximo de 15%, queda das reservas internacionais, além
de uma sensível escassez de alimentos.
O mais grave é que as coisas estão piorando. Até meados de 2013, não
faltavam alimentos e não havia filas. A inflação vinha caindo até 2008,
subindo em 2011. Somadas a estas, estão a fuga aguda de capitais. Em seu
conjunto, os fenômenos refletem um problema estrutural, que sucessivos
governos não resolveram e que eclodiu com a morte de Chavez.
O jornalista Modesto Emilio Guerrero, venezuelano radicado na
Argentina, que apoia o processo bolivariano, pergunta-se como é possível
haver escassez, quando o governo controla 36% do sistema de
distribuição de alimentos. Ainda aqui, observa que as 240 empresas
criadas, e outras muito nacionalizadas e estatizadas, não estão
conseguindo aumentar a produção alimentar. “Há dois PIBs na Venezuela, o
petroleiro e o não petroleiro. O petroleiro está intacto, não há
problemas. É o PIB não petroleiro que está falido, tanto pelo lado
privado como o estatal” (Cartas, 21 de Março de 2014).
É verdade que a escassez se explica, em certa medida, pelo
contrabando de mercadorias com preços garantidos à Colômbia. Mas há
muito mais. O setor privado não cresce porque a burguesia não está
investindo. Embora a Venezuela conte com duas grandes fábricas de
alumínio, estas não são competitivas. A fábrica de aço, que foi uma
propriedade de Techint, teve uma queda na qualidade da produção depois
que a empresa foi nacionalizada em maio de 2009. “Você vai culpar o
imperialismo?” pergunta Guerrero, referindo-se a quem só usa esse tipo
de argumento para fugir das próprias responsabilidades.
Sua explicação prioriza o lado da cultura política. O homem que foi
representante da União Nacional dos Trabalhadores, fundada por
seguidores de Chávez em 2003, afirma que a ineficiência dessas grandes
empresas se deve à “burocracia sindical, que efetivamente protege um
tipo de indústria para pagar salários do Estado. O Estado paga salários
para que não haja crise social”.
Por outro lado, o jornalista enfatiza que na Techint a produção era
superior quando a indústria ainda era multinacional. As empresas
nacionalizadas repetem a história do socialismo real. Embora
haja mudanças radicais, “brota, dentro do próprio organismo
revolucionário e social, um corpo venenoso, gangrenado, que é chamado de
burocracia”. Na Venezuela, ela teria se tornado burguesa e corrupta.»[...]
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Abr. 2014
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