sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O tabu na nacionalização





«Este Verão, que fica marcado pelo recrudescimento assombroso de guerras e massacres, trouxe à actualidade o caso BES e, com ele, o regresso de um odor fétido que faz lembrar o início da crise financeira internacional, em 2007-2008. Nessa altura, o rebentamento de escândalos financeiros e as falências bancárias tiveram como resposta salvamentos vários pelos poderes públicos, com socialização dos prejuízos, para evitar riscos sistémicos (crédito, pagamentos) sobre toda a economia. Multiplicaram-se os discursos inflamados contra comportamentos individuais moralmente condenáveis e a favor de uma nova era de regulação e supervisão do sector. Quanto menos se avançava nas alterações estruturais aventadas, mais irados e moralistas se tornavam os discursos. O ruído é uma arma.
Os anos passaram. Entre políticas austeritárias e lavagens bancárias, passaram também os rendimentos de trabalhadores e pensionistas, as protecções sociais e os recursos públicos. Os governos nacionais e as instituições europeias transferiram-nos, tanto quanto conseguiram, da esfera do trabalho para a do capital. Na supervisão e regulação da banca-finança, pouco mudou. Sem surpresa, os escândalos financeiros e as falências bancárias continuam a irromper ciclicamente, as sociedades continuam a ver o resultado do seu trabalho desviado para fins e interesses privados e a ouvir dizer que, para o que importa, não há dinheiro. É o que acontece quando se governa para grandes accionistas e credores.

O caso BES, que envolve o Banco Espírito Santo e tantas outras estruturas do grupo, é de facto um exemplo paradigmático do colapso de um modelo económico historicamente falido [1]. É-o também da plasticidade das respostas da economia financeirizada e da capacidade que esta tem, através de governos cúmplices ou complacentes, de conseguir que uma crise de sistema seja suportada pelos cidadãos contribuintes. Espera-se que as entidades competentes apurem responsabilidades quanto aos indícios de falsificação de contas, gestão danosa, abusos de informação privilegiada, etc. Mas, enquanto isso, a lavagem (separação dos activos tóxicos) que criou o Novo Banco, que a seguir deve ser vendido, volta a ameaçar comprometer dinheiros públicos, desde logo pelo papel da Caixa Geral de Depósitos no modelo da resolução encontrada (ver, nesta edição, o artigo de Eugenia Pires).
Uma vez mais, enquanto alguns têm esperança de que provas escandalosas de ilegalidades e incompetências derrubem o mito neoliberal de que o privado gere sempre melhor do que o Estado, vai acontecendo o contrário: são os próprios poderes públicos que participam da profecia auto-realizadora, ao actuarem perante empresas privadas falidas sem acautelar as finanças públicas e, portanto, a capacidade para cumprirem as suas missões sociais, económicas, culturais, etc. Por via do Estado, os cidadãos assumem as perdas e o risco de investimentos que, nas últimas décadas, nem sequer foram preferencialmente feitos no sector produtivo, tendo-se antes deslocado para mercados de capitais, investimentos especulativos, etc. É também isto a financeirização da economia.

Podia concluir-se que lá ficaram outra vez adiadas a reconversão da banca-finança às funções que devia ter e a regulação e supervisão que podem proteger o sector financeiro de escândalos e injustiças futuros. Mas é um erro pensar que o mal do sistema é estar parado. Ele está mesmo em grande actividade, só que no sentido contrário. A União Europeia e muitos governos estão a avançar, em segredo, com a liberalização e desregulação total do comércio dos serviços. No caso dos serviços financeiros, isso passa por eliminar as limitações à dimensão e tipo de actividade das instituições, as restrições aos movimentos de capitais especulativos ou as obrigações de divulgação de operações em paraísos fiscais (ver, nesta edição, o artigo de Raoul Marc Jennar). A liberação e a desregulação são o sistema. Os poderes públicos nacionais e as instituições da União Europeia são só os seus mais recentes aliados-arquitectos.
Foi neste quadro que o sempre flexível capitalismo, novamente sem beliscar a liberdade dos grandes investidores de acumular lucros, conseguiu realizar «nacionalizações» de um novo tipo: as que, sendo embora justificadas, são concretizadas de tal forma que prejudicam mais o sector público do que o privado. É que nacionalizações há muitas… E convinha que arranjássemos maneira de os palermas não sermos nós, os que vivem e querem viver do seu trabalho.

As nacionalizações foram temidas, em Portugal, pelos ricos e poderosos desde a Revolução de Abril; foram revertidas pelas décadas de privatizações neoliberais, logo a partir do primeiro cavaquismo; foram olhadas como um papão, ou tabu que mais valia silenciar, mesmo à esquerda, para evitar rótulos de «negação passadista e meramente ideológica da economia mista». Definidas como «apropriação por um Estado de uma indústria ou outra actividade económica anteriormente explorada por uma entidade privada», segundo os dicionários, elas pareciam destinadas a desaparecer, nos tempos mais próximos, como proposta política. Não por acaso, a governação austeritária recuperou-as no sector bancário, só quando está iminente uma situação de falência mas abdicando alegremente de ter um papel activo, quer na gestão das empresas em que investe fundos públicos, quer na definição de regras e políticas que poderiam reconduzir os recursos e a economia para finalidades como o emprego, o combate às desigualdades e o Estado social.

É certo que, mesmo que quisesse aproveitar oportunidades como estas para recuperar instrumentos de política vitais, um governo de um país da União Europeia está hoje muito constrangido pelos tratados e demais regras da união económica e monetária. Mas nada está nunca definitivamente decidido. A política e o futuro das sociedades faz-se de escolhas. Em democracia, as escolhas que são feitas à revelia dos cidadãos e contra eles não podem subsistir. Hoje, a grande maioria dos cidadãos, mais ao menos politizados, não consegue compreender, nem muito menos aceitar, que na agenda política dos que defendem democracia e justiça social não esteja um combate corajoso ao pacto de suicídio que nos é imposto pela União Europeia e pelo euro. Esperam que se trave esse combate, mesmo sabendo que ele é duro e impõe escolhas difíceis. Esperam que a canalização de dinheiros públicos, parcos e finitos, seja inseparável da exigência de contrapartidas que defendam o interesse público e as finalidades do Estado, não gastando mais um cêntimo que seja a arcar com prejuízos sem nunca ter acesso aos lucros. O nome disto pode ser desprivatização, socialização, popularização, comunitarização, nacionalização… Pode ser até nacionalização boa. Mas as esquerdas não podem ficar reféns de tabus.»

Notas

[1] Cf. Nuno Teles, «De Espírito Santo a zumbi: história de uma crise que é de todos», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2014.


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