«Este Verão,
que fica marcado pelo recrudescimento assombroso de guerras e massacres, trouxe
à actualidade o caso BES e, com ele, o regresso de um odor fétido que faz
lembrar o início da crise financeira internacional, em 2007-2008. Nessa altura,
o rebentamento de escândalos financeiros e as falências bancárias tiveram como
resposta salvamentos vários pelos poderes públicos, com socialização dos
prejuízos, para evitar riscos sistémicos (crédito, pagamentos) sobre toda a
economia. Multiplicaram-se os discursos inflamados contra comportamentos
individuais moralmente condenáveis e a favor de uma nova era de regulação e
supervisão do sector. Quanto menos se avançava nas alterações estruturais
aventadas, mais irados e moralistas se tornavam os discursos. O ruído é uma
arma.
Os anos
passaram. Entre políticas austeritárias e lavagens bancárias, passaram também
os rendimentos de trabalhadores e pensionistas, as protecções sociais e os
recursos públicos. Os governos nacionais e as instituições europeias
transferiram-nos, tanto quanto conseguiram, da esfera do trabalho para a do
capital. Na supervisão e regulação da banca-finança, pouco mudou. Sem surpresa,
os escândalos financeiros e as falências bancárias continuam a irromper
ciclicamente, as sociedades continuam a ver o resultado do seu trabalho desviado
para fins e interesses privados e a ouvir dizer que, para o que importa, não há
dinheiro. É o que acontece quando se governa para grandes accionistas e
credores.
O caso BES, que
envolve o Banco Espírito Santo e tantas outras estruturas do grupo, é de facto
um exemplo paradigmático do colapso de um modelo económico historicamente
falido [1]. É-o também da plasticidade das respostas da
economia financeirizada e da capacidade que esta tem, através de governos
cúmplices ou complacentes, de conseguir que uma crise de sistema seja suportada
pelos cidadãos contribuintes. Espera-se que as entidades competentes apurem
responsabilidades quanto aos indícios de falsificação de contas, gestão danosa,
abusos de informação privilegiada, etc. Mas, enquanto isso, a lavagem
(separação dos activos tóxicos) que criou o Novo Banco, que a seguir deve ser
vendido, volta a ameaçar comprometer dinheiros públicos, desde logo pelo papel
da Caixa Geral de Depósitos no modelo da resolução encontrada (ver, nesta
edição, o artigo de Eugenia Pires).
Uma vez mais,
enquanto alguns têm esperança de que provas escandalosas de ilegalidades e
incompetências derrubem o mito neoliberal de que o privado gere sempre melhor
do que o Estado, vai acontecendo o contrário: são os próprios poderes públicos
que participam da profecia auto-realizadora, ao actuarem perante empresas
privadas falidas sem acautelar as finanças públicas e, portanto, a capacidade
para cumprirem as suas missões sociais, económicas, culturais, etc. Por via do
Estado, os cidadãos assumem as perdas e o risco de investimentos que, nas
últimas décadas, nem sequer foram preferencialmente feitos no sector produtivo,
tendo-se antes deslocado para mercados de capitais, investimentos
especulativos, etc. É também isto a financeirização da economia.
Podia
concluir-se que lá ficaram outra vez adiadas a reconversão da banca-finança às
funções que devia ter e a regulação e supervisão que podem proteger o sector
financeiro de escândalos e injustiças futuros. Mas é um erro pensar que o mal
do sistema é estar parado. Ele está mesmo em grande actividade, só que no
sentido contrário. A União Europeia e muitos governos estão a avançar, em
segredo, com a liberalização e desregulação total do comércio dos serviços. No
caso dos serviços financeiros, isso passa por eliminar as limitações à dimensão
e tipo de actividade das instituições, as restrições aos movimentos de capitais
especulativos ou as obrigações de divulgação de operações em paraísos fiscais
(ver, nesta edição, o artigo de Raoul Marc Jennar). A liberação e a
desregulação são o sistema. Os poderes públicos nacionais e as instituições da
União Europeia são só os seus mais recentes aliados-arquitectos.
Foi neste
quadro que o sempre flexível capitalismo, novamente sem beliscar a liberdade
dos grandes investidores de acumular lucros, conseguiu realizar
«nacionalizações» de um novo tipo: as que, sendo embora justificadas, são
concretizadas de tal forma que prejudicam mais o sector público do que o
privado. É que nacionalizações há muitas… E convinha que arranjássemos maneira
de os palermas não sermos nós, os que vivem e querem viver do seu trabalho.
As
nacionalizações foram temidas, em Portugal, pelos ricos e poderosos desde a
Revolução de Abril; foram revertidas pelas décadas de privatizações
neoliberais, logo a partir do primeiro cavaquismo; foram olhadas como um papão,
ou tabu que mais valia silenciar, mesmo à esquerda, para evitar rótulos de
«negação passadista e meramente ideológica da economia mista». Definidas como
«apropriação por um Estado de uma indústria ou outra actividade económica
anteriormente explorada por uma entidade privada», segundo os dicionários, elas
pareciam destinadas a desaparecer, nos tempos mais próximos, como proposta
política. Não por acaso, a governação austeritária recuperou-as no sector
bancário, só quando está iminente uma situação de falência mas abdicando
alegremente de ter um papel activo, quer na gestão das empresas em que investe
fundos públicos, quer na definição de regras e políticas que poderiam
reconduzir os recursos e a economia para finalidades como o emprego, o combate
às desigualdades e o Estado social.
É certo que,
mesmo que quisesse aproveitar oportunidades como estas para recuperar
instrumentos de política vitais, um governo de um país da União Europeia está
hoje muito constrangido pelos tratados e demais regras da união económica e
monetária. Mas nada está nunca definitivamente decidido. A política e o futuro
das sociedades faz-se de escolhas. Em democracia, as escolhas que são feitas à
revelia dos cidadãos e contra eles não podem subsistir. Hoje, a grande maioria
dos cidadãos, mais ao menos politizados, não consegue compreender, nem muito
menos aceitar, que na agenda política dos que defendem democracia e justiça
social não esteja um combate corajoso ao pacto de suicídio que nos é imposto
pela União Europeia e pelo euro. Esperam que se trave esse combate, mesmo
sabendo que ele é duro e impõe escolhas difíceis. Esperam que a canalização de
dinheiros públicos, parcos e finitos, seja inseparável da exigência de
contrapartidas que defendam o interesse público e as finalidades do Estado, não
gastando mais um cêntimo que seja a arcar com prejuízos sem nunca ter acesso
aos lucros. O nome disto pode ser desprivatização, socialização, popularização,
comunitarização, nacionalização… Pode ser até nacionalização boa. Mas as
esquerdas não podem ficar reféns de tabus.»
Notas
[1] Cf. Nuno Teles, «De Espírito Santo a zumbi:
história de uma crise que é de todos», Le Monde diplomatique – edição
portuguesa, Agosto de 2014.
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