segunda-feira, 5 de julho de 2010

Migração, saúde e cultura 2)

Four populations of the first wave of modern h...Image via Wikipedia


António Campos



Afectadas por uma «dupla ausência> que advém da sua dupla condição de emigrantes e imigrantes (Sayad 1999), as populações migrantes sentem o sabor amargo da desilusão após a miragem. Encontram-se, com frequência, a viver o insuportável e o incompreensível. Tal experiência, quando transformada em condição de vida, assume contornos de um absurdo que pode comprometer a integridade física e psíquica dos indivíduos. Os «ausentes» que são, tanto no país de emigração como no de imigração, carregam consigo um misto de culpabilidade e de vitimização. Suportam dentro de si um peso inconfessável porque, muitas vezes, o seu sentido é-lhes estranham ente desconhecido. A incapacidade de atribuir um sentido ou de elaborar uma inteligibilidade à sua própria condição cria o mal-estar existencial e o sofrimento psíquico. Ao mesmo tempo que representa um custo social da imigração, o sofrimento é vivido na esfera mais íntima e profunda da vida de cada imigrante, marcando-lhes o corpo e a alma em silêncio. A vivência interior da fractura entre fronteiras da memória e da identidade (Beneduce 1998) é portadora de uma nova subjectividade que os imigrantes muitas vezes não são capazes de gerir.

As ilusões que motivam a imigração, além da necessidade económica, transformam-se numa melancolia que tempera as amarguras quotidianas dos imigrantes, face à sua vulnerabilidade perante a lei, à exploração no trabalho, à exclusão social ou ao racismo. Frequentemente perseguidos a partir do interior por uma imobilidade paralisante, aqueles são também acossados por uma economia global que, por um lado, os atrai para, por outro lado, logo os rejeitar. Deste modo, eles perdem ainda «perspectiva», auto-excluindo-se de uma geometria mais vasta propícia a um novo projecto de vida. A própria ideia de projecto fica neles assombrada pela experiência traumática da perda e da ruptura associada ao fenómeno de migração. E esta descontinuidade paradigmática das vidas dos imigrantes é múltipla: no espaço, no tempo, nas referências simbólicas, na língua, nos laços afectivos, na experiência de si e dos outros, na percepção do mundo e nos sentidos atribuídos às coisas.

Não raro, é no contexto das consultas de apoio médico e psicológico aos migrantes que estes tentam exprimir o seu mal-estar, muitas vezes já em situação de desespero. Importa, a este propósito, lembrar que o pedido de ajuda é na maioria dos casos encaminhado por assistentes dos serviços sociais e religiosos, pela polícia, pelos vizinhos ou pela família. Outras vezes, encaminha-os, simplesmente, o desespero ante um ataque de pânico sem causa aparente ou antes desencadeado por uma ameaça de morte perpetrada pelo patrão insatisfeito ou ainda por uma tentativa de suicídio. As diferenças culturais entre nativos e imigrantes vem juntar-se ainda a diferença de tradições e práticas terapêuticas entre os prestadores de cuidados de saúde e os pacientes migrantes. Esta é uma realidade que ultrapassa os próprios técnicos de saúde, também eles encurralados numa estrutura hierárquica e institucional pouco flexível à perspectivação do futuro sob novos moldes.

A vulnerabilidade que conduz os imigrantes a um pedido de ajuda - independentemente de qualquer descrença mais ou menos legítima nas instituições - acarreta um potencial de diálogo: intercultural e político. A tomada de consciência dos equívocos e impasses de entendimento gera a necessidade colectiva de encontrar novas respostas. Esta nova necessidade motiva, por sua vez, a pesquisa de estratégias terapêuticas e analíticas adequadas à realidade plural dos nossos dias. Investigadores de várias disciplinas interessadas na questão da saúde dos imigrantes convergem cada vez mais para um diálogo com antropólogos e cientistas sociais nas universidades, em centros de acolhimento a imigrantes e em serviços hospitalares, com vista a trabalhar em conjunto sobre estes desafios que hoje a todos se colocam. Este é também um esforço informado por uma antropologia auto-reflexiva pós-colonial (Pina Cabral 2004), que propõe uma etnografia de práticas terapêuticas em contextos de diversidade cultural e uma crítica epistemológica dos saberes dominantes.

Em Portugal existem já iniciativas pioneiras que procuram situar as histórias dos pacientes em estratégias localizadas de .cura e em representações culturais da doença (Carapinheiro 1993; Quartilho 2001; Lechner 2005; Pussetti 2006). Mas urge desenvolver nas nossas universidades este novo e importante campo de investigação/acção centrado nos apoios a populações migrantes residentes em Portugal(…).

Elsa Lechner, in Migração, Saúde e Diversidade Cultural, 2009 (adaptado) - conclusão

Enhanced by Zemanta

Sem comentários:

Enviar um comentário