sexta-feira, 8 de julho de 2011

Éramos neutros mas colaborávamos na espionagem... com todos

António Campos


“O Império dos Espiões – A espionagem em Portugal e nas colónias”, de Rui Araújo (Oficina do Livro, 2010) propicia uma leitura absorvente e levanta mais questões do que os problemas que parecem ter ficado esclarecidos quanto a quem e para quem praticou espionagem em Portugal, na II Guerra Mundial. Por diferentes razões, mas no decurso de todo o conflito, os principais serviços de informações das forças em contenda aqui actuaram, pagaram colaboração a cidadãos de diversa proveniência: marujos, estivadores, jornalistas, diplomatas, polícias, legionários, militares e até desportistas. A polícia política portuguesa não tinha meios para despistar a tempo e horas as actividades dos outros ou dividia-se claramente em apoios ao Eixo ou aos Aliados, favorecendo ou trabalhando discretamente por conta doutrem.

Rui Araújo baseia-se nos 12 volumes dos Diários de Guy Liddell, uma personagem fascinante da espionagem britânica. O autor investigou fontes nacionais que lhe permitiram ter acesso a informação inédita: Cândido Oliveira, futebolista e jornalista foi agente dos serviços secretos britânicos; o capitão Agostinho Lourenço, director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado era Jimmy, nome de código que lhe foi atribuído pelos norte-americanos. Terá sido um auxiliar muito útil na decepção dos serviços secretos japoneses, em Lisboa. O nosso Império Colonial não ficou à margem dos diferentes serviços de informações: em Cabo Verde, havia refugiados políticos, actuavam agentes italianos, portugueses e alemães; em Angola, foram patentes as actividades de espionagem alemãs e que tinham a ver com tráfego marítimo britânico, o movimento de tropas e a situação política no Congo e na África Austral; na Guiné, a espionagem alemã estava muito activa, os alemães estavam particularmente interessados no que se passava na Gâmbia e Serra Leoa mas também o movimento no porto de Dakar. Os principais dirigentes e agentes da polícia política portuguesa estavam bem identificados pela espionagem internacional: quem era pró-britânico ou pró-alemão.

A polícia política procurava estar atenta às reacções, conversas e tomadas de posição públicas tanto dos intelectuais como dos militares. Um diplomata britânico em Lisboa escreveu: “Creio que a melhor forma de penetrar a Polícia Internacional é elogiar a vaidade natural e nacional dos seus responsáveis, que até muito recentemente não eram objecto de atenções por parte do lado britânico e só ouviam dizer mal de nós. Também são sensíveis a pequenas atenções, como charutos e cigarros, uísque, almoços, jantares, passeios de carro e chocolates para as esposas, etc., despesas até hoje inteiramente suportadas por mim”. Ronald Campbell, embaixador britânico, tinha uma noção clara da lealdade de Agostinho Lourenço a Salazar e sabia que a sua demissão acarretaria consequências desastrosas para a espionagem britânica. Esta julgava também que Lourenço trabalhava para os alemães e por quantias elevadíssimas. O capitão José Catela do Vale Teixeira, secretário-geral da polícia política, teria tido um relacionamento privilegiado com os serviços britânicos.

Rui Araújo relata o acontecimento de uma actividade marítima inimiga que se realizou em Goa, em 1943 e que levou ao incêndio de três navios mercantes alemães e um italiano. As bases dos Açores, a posição estratégica de Cabo Verde, a eventualidade de uma invasão de Portugal pelas tropas alemãs, são matérias que levaram a intervenções da espionagem de um lado e do outro, recorde-se que nesta altura a Legião Portuguesa tinha peso na protecção de objectivos estratégicos e ambos os lados queriam saber a natureza do que era fundamental proteger e com que meios. O autor dá pistas sobre as empresas alemãs, o procedimento adoptado por forças reprimidas como os comunistas e os maçons. Obviamente que é dado um grande destaque à ocupação de Timor, primeiro por australianos e britânicos, depois por japoneses. Com menos relevo do que Angola, também em Moçambique houve recolha de informações intensas já que no canal de Moçambique havia um grande tráfego dos cargueiros aliados e o almirantado alemão pretendia que os japoneses fizessem da região um teatro de guerra muito importante.

Cândido de Oliveira tem um tratamento muito especial nesta obra, foi de facto uma personagem fascinante, tudo fez para servir os interesses britânicos, aliás estas autoridades recompensaram-no mais tarde. Os relatórios de Campbell sobre as actividades da espionagem do Eixo foram objecto de um relatório detalhado que mandou a Salazar: nome de pessoas, moradas, rede de colaboradores e ligações com instituições como a polícia política, a GNR, o Exército, os bancos.

Como é compreensível, a fatia de leão vai para a ocupação das bases dos Açores, mas é muito interessante a inquirição da polícia política tanto junto da espionagem alemã com britânica. O autor lembra-nos os agentes pró-alemães em Inglaterra. Estranhamente, não há uma só referência a importantes missões alemãs como aquela que trouxe o general Walter Schellenberg a Lisboa, ao que parece a sua missão seria raptar o duque de Windsor. Nas suas memórias, ele não deixa de mostrar a sua perplexidade quando os informadores portugueses pediam dinheiro para mudar meias solas, tal a perseguição a pé a que se viam forçados para seguir os agentes britânicos…

A espionagem em Portugal e nas colónias foi um factor acessório, periférico, durante a II Guerra. Teve curiosidades estimulantes e ficou-se igualmente a saber o que preocupava este país neutral para os dois lados. De um modo geral, nada passou do nível da pequena história e das insignificâncias. Em 8 de Maio de 1945, Salazar proferiu um longo discurso na Assembleia Nacional e mostrou a sua ufania: “Atravessámos incólumes a guerra e, podemos dizê-lo, sem sacrificar nem a dignidade da nação nem os seus interesses a amizades. Sempre que foi necessário marcar posições pela palavra ou pelo acto em favor de amigos ou aliados, e fosse qual fosse a sua situação de momento, ou fizemos espontaneamente ou acorremos de boa mente ao seu apelo.
Decerto houve que ter plena consciência das consequências possíveis, mas não exagerámos os riscos para nos desviarmos do dever: aceitámos serenamente e em todas as circunstâncias a parte de sacrifício que pudesse caber-nos… Pudemos, com o coração isento, debruçar-nos piedosamente sobre todos os sofrimentos, admirar todos os heroísmos, ser compreensivos para todos os erros, sem deixar de ser severos para com todos os crimes”. Houve compreensão e lassidão com os actos de espionagem; e foi-se gradualmente severo de acordo com a evolução da guerra. Mas o império dos espiões não passou de uma curiosidade decorativa, não era por Portugal e pelas colónias que passaram as batalhas cruciais.

Beja Santos
Nov.2010

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