quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Estado, os imperativos da cidadania, a justiça social - Ultrapassar o mal-estar colectivo, promover o bem comum

Quai des brumes...!!!Image by Denis Collette...!!! via Flickr



António Campos


“Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos” é um ensaio notável. É o último dos textos de referência de um dos principais historiadores e pensadores contemporâneos, recentemente desaparecido, Tony Judt (Edições 70, 2010). É de leitura obrigatória, seja em que lugar do espectro político nos posicionemos. A que tipo de reflexão se acomete este brilhante intelectual? Andamos erráticos, descontentes, exaustos pela obsessão em fazer riqueza, assistindo a crescentes disparidades sociais, ajoelhados pelo culto da privatização e das excelências do sector privado. Erráticos e incapazes de conceber alternativas. Tony Judt não esconde a sua inclinação pelos princípios estruturais da social-democracia: são tolerantes na cultura e na religião e acreditam na virtude da acção colectiva para o bem comum.

É crítico com eles: “Os sociais-democratas de hoje pedem desculpa e estão à defesa. Têm deixado sem refutação os críticos que afirmam ser o modelo europeu demasiado caro ou economicamente ineficaz. E contudo o Estado-providência mantém a popularidade de sempre junto dos seus beneficiários. Em lado algum na Europa existe um eleitorado a favor da abolição dos erviços de saúde públicos, do ensino gratuito ou subsidiado ou da diminuição da prestação pública dos transportes e outros serviços essenciais”.

O colapso bancário em massa fez despertar as consciências, mas nenhuma revolução das ideias foi posta em marcha. Há muitas razões para estar zangado com as desigualdades e as injustiças, a exploração e a corrupção. Mas não basta identificar os defeitos e espalhar retórica. A escolha já não está entre o Estado e o mercado, mas entre dois tipos de Estado. Há que reimaginar o papel do Governo. Daí este livro.

Vamos aos sintomas críticos. Do fim do século XIX até aos anos 70, as sociedades avançadas reduziram as desigualdades: graças ao imposto progressivo, subsídios estatais, fornecimento de serviços sociais contra os infortúnios. Daí para cá vivemos sob o domínio da abundancia privada e penúria pública. Temos hoje problemas sociais que estavam completamente esquecidos. A riqueza total esconde escandalosas disparidades distributivas. Voltámos a exibir a grande riqueza e a conceder-lhe estatuto de fama, as indústrias de entretenimento estão ao serviço deste modelo. Temos agora novas leis dos pobres com regras muito precisas de candidatura, por vezes de grande humilhação. As autoridades públicas estão permanentemente desconfiadas. Vivemos de tal modo impregnados sob a exaltação do privado e do sucesso dos ricos e das vantagens do mercado livre, que dificilmente sabemos raciocinar fora do contexto dos lucros e das perdas. De facto, a política pública passou a ser um mero cálculo económico. Acontece que os mercados não geram automaticamente confiança, precisam de regulação, há interesses prevalecentes entre a iniciativa individual e coesão social.

O que leva ao autor a questionar o mundo que se perdeu com o advento do triunfalismo individualista, a apoteose do sucesso no fabrico da riqueza. Os liberais, à esquerda e à direita, entenderam-se sem grandes constrangimentos quanto ao modo de erradicar o desemprego, a inflação e a insatisfação das necessidades elementares, estabelecer um consenso sobre políticas sociais e souberam tirar benefícios da maior igualdade daí adveniente. Nem à esquerda nem à direita se acreditava na magia do mercado, aceitou-se o planeamento indicativo, os objectivos das políticas sociais e o saber viver numa comunidade de confiança. Os conservadores dos anos 50 e 60, com Raymond Aron ou Isaiah Berlin eram liberais clássicos, aceitavam o primado da ética na política.

Depois deu-se uma revolução intelectual que se pode resumir na visão do mundo de Margaret Thatcher: “Sociedade é uma coisa que não existe, existem só indivíduos e famílias”. Um conjunto de economistas oriundos da Europa Central, todos fugidos às ditaduras, vieram em coro apelar ao fim da intervenção do Estado, do planeamento, do sector público, das políticas sociais. O privado passou a ser enaltecido e o lucro máximo elogiado. Entrara-se na era das privatizações e no ódio ao sector público. Nasceu assim o défice democrático que hoje nos abala e que levou à erosão do conceito do bom comum.

Nem o fim do comunismo alterou este estado de coisas, a tal ponto que a Europa de Leste foi entregue a predadores. Hoje, palavras como socialismo, revolução, assistência social são olhadas com suspeição. Tony Judt vem propor que se reformule o diálogo público, começando pelas instituições (novas leis, regimes eleitorais diferentes, restrições aos grupos de pressão e ao financiamento político…) e aprender a saber viver com a complexidade e a multiplicidade de interesses em conflito. O que significa que há muita coisa a redefinir, desde a riqueza, à justiça, à equidade e ao bem-estar. É indispensável regressar à questão social, reinstalar as massas trabalhadoras nos ideais da comunidade. Temos de decidir o que o Estado deve fazer a fim de que homens e mulheres tenham vidas decentes, escreve Judt. A mudança tecnológica vai pesar no conjunto de todas as outras alterações. Como ele também observa: “A única maneira de o mundo desenvolvido poder reagir competitivamente é explorando a sua vantagem comparativa nas indústrias avançadas com grande investimento de capital, onde o conhecimento contém tudo. Nestas circunstâncias, a procura de novas qualificações avança mais depressa que a nossa capacidade de ensinar, podem ficar para trás até os trabalhadores mais bem preparados”. O papel do Estado precisa de ser reequacionado, independentemente daquilo que pensarmos acerca da filantropia ou das acções caritativas.

É um dos aspectos mais elevados do ensaio de Tony Judt, esta proposta de uma nova narrativa moral, o saber tirar partido da globalização, o saber olhar o mercado sem desdém e os serviços públicos sob o primado da sustentabilidade e do desenvolvimento humano. Orienta um olhar revigorado sobre os princípios da social-democracia e sugere que saibamos aprender com as lições de um passado de solidariedade, fazendo do descontentamento actual a alavanca para o indivíduo reencontrado com a comunidade, ambos dispostos a partilhar as riquezas e os sacrifícios.

Beja Santos
Nov.2010

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