sexta-feira, 7 de junho de 2013

Economia e religião nas culturas letradas - o pecado como conceito da reprodução social (I)



 

O Problema

Todos os povos idealizam as formas segundo as quais os bens serão produzidos, distribuídos e consumidos. Se esta actividade está ou não dividida em estruturas e instâncias, e qual delas assume precedência por sobre as restantes, é um problema do investigador, cuja técnica de conhecimento contém os limites do seu saber. Pode-se dizer que, para as pessoas que trabalham, o conhecimento daquilo que fazem, como, quando, quanto e com quem passa por avaliações e decisões que dependem também do seu próprio entendimento do mundo. Assim sendo, penso que existe apenas uma forma de abordar este processo, definindo os conceitos que usamos para escutá-lo: se é certo que todos os povos produzem, não é menos certo que todos sabem como o fazer. É neste conjunto que temos de introduzir a dimensão temporal para entender como se combinam as ideias e as actividades. Ao longo do tempo, o conceito de economia tem variado desde o conjunto doméstico que trabalha, dividindo as actividades segundo as formas de classificar pessoas dos gregos clássicos, até à teoria independente que se pronuncia sobre as qualidades das coisas, teorizando e estudando a sua acumulação, cujo controlo passa a classificar as pessoas.

Ao longo dos séculos, as formas de combinar coisas, pessoas, ideias e tecnologias têm sido definidas pela participação de uma vontade divina arbitrária na criação da sociedade, incarnada aos seus ministros e em preceitos.
Pode dizer-se, que a vontade divina, sendo criação do homem, já que só tem existência na medida em que é usada no cálculo reprodutivo, incarnando-se nele, ou melhor, materializando-se nele, é o conceito à volta do qual os povos constroem a explicação de si próprios e aferem as relações entre os membros individuais. Esta é a forma chamada religiosa de entender as relações sociais, definindo o trabalho de forma directa e precisa, que se pronuncia sobre as modalidades de pagamento de preços e salários. Não se pode dizer que a economia tenha permanecido dentro da religião, porque a religião é outra forma de pensar o valor das coisas; é, contudo, a forma que serve de base imediata à criação da economia como modo de teorizar que calcula pela utilidade marginal que os homens podem criar quando têm bens acumulados com vista ao lucro. A divisão taxativa entre ambas as formas de teorizar-se deve-se, por um lado, à divisão entre ciência e teologia com que os intelectuais entendem o mundo, enquanto que, por outro, se deve à ignorância que a cultura letrada, enquanto forma dominante de pensar a partir da causalidade, atribui aos que não sabem economia. Estes, usam o saber subordinado da religião.

A religião

Existem mil e uma formas de definir este conceito, e outras tantas formas haverá também de entendê-lo e pronunciar-se acerca dele. Entendo por religião o conjunto de abstracções em ideias, rituais e entidades espirituais que os homens elaboram a partir da sua experiência histórica: a teorização do acontecer histórico.
No meu pensamento está presente o facto de que, enquanto seres humanos, pronunciamo-nos acerca dos nossos factos e definimo-los porque é essa a forma de os entendermos, colocando os limites. Acabamos por definir da mesma forma, aquilo que serve como o que não serve: sistematizamos os abusos do corpo e sistematizamos as virtudes da alma. A alma passa a ser assim, uma síntese do que as pessoas devem fazer, é a memória individual no meio do colectivo. O homem da mulher Kiriwina (Malinowski, 1948) quando produz inhames para o irmão dela, exibe a colheita e leva-a em procissão a sua casa; quando morre, o inhame maior ser-lhe-á oferecido para, na ilha Tuma ou ilha dos mortos, apresentar ao guardião, que assim ponderará o seu valor enquanto homem que vale a pena repetir através da encarnação. As formas de compreensão dos Maori (Firth, 1929) passam por ponderar os valores que cada pessoa deve ter na sua condição. O mito do Bagré dos LoDabaga (Goody, 1970) serve para desenvolver as qualidades da observação e da memória.

As pessoas no Ocidente têm de exibir virtudes, que estão repartidas entre os atributos da divindade, e o culto dos mortos específicos passaram a ser santos. Enquanto treino, a religião cumpre a função social de dividir cada membro individual pelo conjunto de qualidades que, previamente, compõem o modelo central – a divindade. As qualidades da mente que abstraem passam por entender a diligência, a lealdade, o amor, a compaixão, a caridade, a fé e outras virtudes que, se têm, estão atribuídas em conjunto com a sua versão negativa. Parte da abstracção feita pela mente que constrói as relações sociais são as ideias de mal e de dor. Mesmo a explicação da criação do homem é um mito do Génesis que explica, com todo o detalhe, como se chegou a saber: em companhia de outros seres humanos, da própria natureza que é a serpente, a árvore e o jardim, e prescindindo da divindade e das suas normas. O castigo da expulsão, antecipa as fadigas pelas quais passará o corpo e define com antecedência as doenças ou disfunções que terá na medida em que transforma a matéria em bens. De forma sistemática, a concepção que o homem tem da sua própria história é abstraída em formas explicativas de como entender o real: pessoalmente, experimentando, sem recurso a outras forças para além da sua, ao mesmo tempo que vai entregando os elementos do trabalho em representações que permitem lembrar nas culturas sem escrita. A palavra divindade não é suficiente, existem as representações que se vêem, assim como mais tarde se lêem. Com técnicas diversas, o homem abstrai a sua acção e recorda.(…)

Raul Iturra, do Aventar
Julho 2011

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