O Problema
Todos os povos idealizam as formas segundo
as quais os bens serão produzidos, distribuídos e consumidos. Se esta
actividade está ou não dividida em estruturas e instâncias, e qual delas assume
precedência por sobre as restantes, é um problema do investigador, cuja técnica
de conhecimento contém os limites do seu saber. Pode-se dizer que, para as
pessoas que trabalham, o conhecimento daquilo que fazem, como, quando, quanto e
com quem passa por avaliações e decisões que dependem também do seu próprio
entendimento do mundo. Assim sendo, penso que existe apenas uma forma de
abordar este processo, definindo os conceitos que usamos para escutá-lo: se é
certo que todos os povos produzem, não é menos certo que todos sabem como o
fazer. É neste conjunto que temos de introduzir a dimensão temporal para
entender como se combinam as ideias e as actividades. Ao longo do tempo, o
conceito de economia tem variado desde o conjunto doméstico que trabalha,
dividindo as actividades segundo as formas de classificar pessoas dos gregos clássicos,
até à teoria independente que se pronuncia sobre as qualidades das coisas,
teorizando e estudando a sua acumulação, cujo controlo passa a classificar as
pessoas.
Ao longo dos séculos, as formas de
combinar coisas, pessoas, ideias e tecnologias têm sido definidas pela
participação de uma vontade divina arbitrária na criação da sociedade,
incarnada aos seus ministros e em preceitos.
Pode dizer-se, que a vontade divina, sendo
criação do homem, já que só tem existência na medida em que é usada no cálculo
reprodutivo, incarnando-se nele, ou melhor, materializando-se nele, é o
conceito à volta do qual os povos constroem a explicação de si próprios e
aferem as relações entre os membros individuais. Esta é a forma chamada
religiosa de entender as relações sociais, definindo o trabalho de forma
directa e precisa, que se pronuncia sobre as modalidades de pagamento de preços
e salários. Não se pode dizer que a economia tenha permanecido dentro da
religião, porque a religião é outra forma de pensar o valor das coisas; é,
contudo, a forma que serve de base imediata à criação da economia como modo de
teorizar que calcula pela utilidade marginal que os homens podem criar quando
têm bens acumulados com vista ao lucro. A divisão taxativa entre ambas as
formas de teorizar-se deve-se, por um lado, à divisão entre ciência e teologia
com que os intelectuais entendem o mundo, enquanto que, por outro, se deve à
ignorância que a cultura letrada, enquanto forma dominante de pensar a partir
da causalidade, atribui aos que não sabem economia. Estes, usam o saber
subordinado da religião.
A religião
Existem mil e uma formas de definir este
conceito, e outras tantas formas haverá também de entendê-lo e pronunciar-se
acerca dele. Entendo por religião o conjunto de abstracções em ideias, rituais
e entidades espirituais que os homens elaboram a partir da sua experiência
histórica: a teorização do acontecer histórico.
No meu pensamento está presente o facto de
que, enquanto seres humanos, pronunciamo-nos acerca dos nossos factos e definimo-los
porque é essa a forma de os entendermos, colocando os limites. Acabamos por
definir da mesma forma, aquilo que serve como o que não serve: sistematizamos
os abusos do corpo e sistematizamos as virtudes da alma. A alma passa a ser
assim, uma síntese do que as pessoas devem fazer, é a memória individual no
meio do colectivo. O homem da mulher Kiriwina (Malinowski, 1948) quando produz
inhames para o irmão dela, exibe a colheita e leva-a em procissão a sua casa;
quando morre, o inhame maior ser-lhe-á oferecido para, na ilha Tuma ou
ilha dos mortos, apresentar ao guardião, que assim ponderará o seu valor
enquanto homem que vale a pena repetir através da encarnação. As formas de compreensão
dos Maori (Firth, 1929) passam por ponderar os valores que cada pessoa deve ter
na sua condição. O mito do Bagré dos LoDabaga (Goody, 1970) serve para
desenvolver as qualidades da observação e da memória.
As pessoas no Ocidente
têm de exibir virtudes, que estão repartidas entre os atributos da divindade, e
o culto dos mortos específicos passaram a ser santos. Enquanto treino, a
religião cumpre a função social de dividir cada membro individual pelo conjunto
de qualidades que, previamente, compõem o modelo central – a divindade. As
qualidades da mente que abstraem passam por entender a diligência, a lealdade,
o amor, a compaixão, a caridade, a fé e outras virtudes que, se têm, estão
atribuídas em conjunto com a sua versão negativa. Parte da abstracção feita
pela mente que constrói as relações sociais são as ideias de mal e de dor.
Mesmo a explicação da criação do homem é um mito do Génesis que explica,
com todo o detalhe, como se chegou a saber: em companhia de outros seres
humanos, da própria natureza que é a serpente, a árvore e o jardim, e
prescindindo da divindade e das suas normas. O castigo da expulsão, antecipa as
fadigas pelas quais passará o corpo e define com antecedência as doenças ou
disfunções que terá na medida em que transforma a matéria em bens. De forma
sistemática, a concepção que o homem tem da sua própria história é abstraída em
formas explicativas de como entender o real: pessoalmente, experimentando, sem
recurso a outras forças para além da sua, ao mesmo tempo que vai entregando os
elementos do trabalho em representações que permitem lembrar nas culturas sem
escrita. A palavra divindade não é suficiente, existem as representações que se
vêem, assim como mais tarde se lêem. Com técnicas diversas, o homem abstrai a
sua acção e recorda.(…)
Raul Iturra, do
Aventar
Julho 2011
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