1. Introdução
Ao longo da História os camponeses têm
estabelecido uma racionalidade do trabalho largamente baseada em laços
pessoais. As decisões de escolha de uma determinada cultura, de quando e como
semear, se bem que limitadas por factores ecológicos, têm obedecido às
circunstâncias do momento baseadas na relação com os recursos de reprodução,
relação essa que tem variado em diferentes épocas históricas. Terra, trabalho e
tecnologia, os três principais recursos necessários à sobrevivência dos
camponeses, são geridos e correlacionados de modo mutável, na base de
obrigações morais entre parentes e vizinhos; da mesma forma, a definição de
alianças e a circulação das populações vão obedecer a um ritual dentro dos
parâmetros definidos pela Igreja Católica Romana, constantemente desenvolvidos
ou manipulados pelos próprios camponeses. Em resumo, a organização camponesa do
trabalho é expressa e materializada em princípios morais que derivam da crença
religiosa.
A relação do campesinato com a terra, o trabalho e a tecnologia tem sofrido
profundas alterações em Portugal nos últimos duzentos anos.
Se é que existe actualmente, o pequeno
proprietário do Norte, que referirei nesta intervenção e o trabalhador sem
terra, do Sul, ao qual poderá ser aplicada a minha hipótese se de «religião»
passarmos a «política», pois durante os séculos XVIII e XIX e até mesmo na
primeira parte do século XX a situação era diferente para muitos trabalhadores
rurais. A terra estava vinculada a pessoas que, em virtude do seu status de
rei, padre, membro de ordens militares ou monásticas, conde ou morgado,
possuíam a maior parte do território, excluindo os trabalhadores rurais da
propriedade. Estes tinham acesso à terra através de vários contratos pessoais,
essencialmente revogáveis. Deste modo, terra, trabalho e tecnologia,
constituíam também situações precárias para todos os que não possuíam estes
recursos: se um camponês não defendesse os interesses do dono da terra ou se o
seu senhor ficasse do lado dos vencidos quando surgiam lutas políticas, como
foi o caso ao longo do século XIX com as invasões napoleónicas ou com os
conflitos civis entre 1820 e 1840, ser-lhe ia retirada a terra, seria expulso
da aldeia, ficando assim, privado de vizinhos e alfaias. A qualidade pessoal
através da qual circulava a riqueza, assim como as qualidades pessoais do
trabalhador, eram controladas pelos padres locais num registo chamado Róis
de Confessados, onde era anotado o bom comportamento expresso pela
confissão e comunhão na altura do pagamento de uma taxa anual, a côngrua.
Esta
rede de laços pessoais corresponde à materialização de um sistema de relações
sociais ditado pela lei canónica e pela tradição da Igreja Católica. Este
regulamento baseia-se idealmente em princípios éticos, tais como justiça, boa
fé, honestidade e compaixão, profundamente enraizados na pregação do evangelho
e na tradição dos patriarcas da Igreja, como um corpo de conhecimentos
transmitidos através dos séculos aos camponeses pela prédica dos padres e pela
celebração ritual. Esta regulamentação das relações sociais, embora
desconhecida para o camponês como um texto por si produzido, ou que tivesse
acesso à sua compreensão (eram textos em língua latina, diferente da sua
própria língua), era-lhe, todavia, conhecida no seu corpus oral de
direitos e obrigações que lhe eram ensinados sob a forma de ritual. Neste
ponto, defendo que esta lei constitui o enquadramento geral de conhecimentos
que, juntamente com a fé, têm sido expressão teológica de um conjunto de
princípios organizadores do comportamento social através dos quais a religião
se tornou em racionalidade do trabalho e assim, a sua prática, a renovação do
saber reprodutivo.
A lei canónica define principalmente uma ordem dada por
Deus, exterior aos assuntos humanos, que se torna a ordem natural da sociedade
pela qual a vontade individual se subordina à vontade daqueles que,
efectivamente, controlam essa ordem, fixando as condições de acesso aos
recursos. Esta ordem dada por Deus, ideia que até mesmo na actualidade subsiste
muito claramente entre uma vasta maioria da população rural, não se limita à
regulamentação da autoridade paterna, princípios de casamento, submissão à
propriedade e proprietário, dimensão das relações políticas e de vizinhança, em
suma, um guia entre a população e os recursos; é também uma regulamentação da
própria natureza no seu ciclo, como se pode verificar pela associação do ciclo
agrícola com o tempo mítico, ordem essa que é ensinada formalmente à população
e que se ajusta perfeitamente à organização social da produção em que a
família, considerada a pedra basilar da sociedade, é cuidadosamente
regulamentada, embora nunca cumprida com rigor pelos camponeses.(…)
Raul Iturra
Julho 2011
do Aventar
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