sexta-feira, 21 de junho de 2013

Práticas religiosas em Portugal (I)



1. Introdução

Ao longo da História os camponeses têm estabelecido uma racionalidade do trabalho largamente baseada em laços pessoais. As decisões de escolha de uma determinada cultura, de quando e como semear, se bem que limitadas por factores ecológicos, têm obedecido às circunstâncias do momento baseadas na relação com os recursos de reprodução, relação essa que tem variado em diferentes épocas históricas. Terra, trabalho e tecnologia, os três principais recursos necessários à sobrevivência dos camponeses, são geridos e correlacionados de modo mutável, na base de obrigações morais entre parentes e vizinhos; da mesma forma, a definição de alianças e a circulação das populações vão obedecer a um ritual dentro dos parâmetros definidos pela Igreja Católica Romana, constantemente desenvolvidos ou manipulados pelos próprios camponeses. Em resumo, a organização camponesa do trabalho é expressa e materializada em princípios morais que derivam da crença religiosa.
A relação do campesinato com a terra, o trabalho e a tecnologia tem sofrido profundas alterações em Portugal nos últimos duzentos anos.

Se é que existe actualmente, o pequeno proprietário do Norte, que referirei nesta intervenção e o trabalhador sem terra, do Sul, ao qual poderá ser aplicada a minha hipótese se de «religião» passarmos a «política», pois durante os séculos XVIII e XIX e até mesmo na primeira parte do século XX a situação era diferente para muitos trabalhadores rurais. A terra estava vinculada a pessoas que, em virtude do seu status de rei, padre, membro de ordens militares ou monásticas, conde ou morgado, possuíam a maior parte do território, excluindo os trabalhadores rurais da propriedade. Estes tinham acesso à terra através de vários contratos pessoais, essencialmente revogáveis. Deste modo, terra, trabalho e tecnologia, constituíam também situações precárias para todos os que não possuíam estes recursos: se um camponês não defendesse os interesses do dono da terra ou se o seu senhor ficasse do lado dos vencidos quando surgiam lutas políticas, como foi o caso ao longo do século XIX com as invasões napoleónicas ou com os conflitos civis entre 1820 e 1840, ser-lhe ia retirada a terra, seria expulso da aldeia, ficando assim, privado de vizinhos e alfaias. A qualidade pessoal através da qual circulava a riqueza, assim como as qualidades pessoais do trabalhador, eram controladas pelos padres locais num registo chamado Róis de Confessados, onde era anotado o bom comportamento expresso pela confissão e comunhão na altura do pagamento de uma taxa anual, a côngrua. 

Esta rede de laços pessoais corresponde à materialização de um sistema de relações sociais ditado pela lei canónica e pela tradição da Igreja Católica. Este regulamento baseia-se idealmente em princípios éticos, tais como justiça, boa fé, honestidade e compaixão, profundamente enraizados na pregação do evangelho e na tradição dos patriarcas da Igreja, como um corpo de conhecimentos transmitidos através dos séculos aos camponeses pela prédica dos padres e pela celebração ritual. Esta regulamentação das relações sociais, embora desconhecida para o camponês como um texto por si produzido, ou que tivesse acesso à sua compreensão (eram textos em língua latina, diferente da sua própria língua), era-lhe, todavia, conhecida no seu corpus oral de direitos e obrigações que lhe eram ensinados sob a forma de ritual. Neste ponto, defendo que esta lei constitui o enquadramento geral de conhecimentos que, juntamente com a fé, têm sido expressão teológica de um conjunto de princípios organizadores do comportamento social através dos quais a religião se tornou em racionalidade do trabalho e assim, a sua prática, a renovação do saber reprodutivo. 

A lei canónica define principalmente uma ordem dada por Deus, exterior aos assuntos humanos, que se torna a ordem natural da sociedade pela qual a vontade individual se subordina à vontade daqueles que, efectivamente, controlam essa ordem, fixando as condições de acesso aos recursos. Esta ordem dada por Deus, ideia que até mesmo na actualidade subsiste muito claramente entre uma vasta maioria da população rural, não se limita à regulamentação da autoridade paterna, princípios de casamento, submissão à propriedade e proprietário, dimensão das relações políticas e de vizinhança, em suma, um guia entre a população e os recursos; é também uma regulamentação da própria natureza no seu ciclo, como se pode verificar pela associação do ciclo agrícola com o tempo mítico, ordem essa que é ensinada formalmente à população e que se ajusta perfeitamente à organização social da produção em que a família, considerada a pedra basilar da sociedade, é cuidadosamente regulamentada, embora nunca cumprida com rigor pelos camponeses.(…)

Raul Iturra
Julho 2011
do Aventar

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