O pecado
Se o trabalho é a colaboração de seres
humanos, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a segunda, quer
dizer, o abandono da ideia de divindade ou a sistematização da matéria, que é o
pecado senão uma taxinomia e uma garantia?
Influenciados como estamos pela nossa
própria forma de pensar, poderemos entender os seres humanos que, pela crença,
definem as formas incorpóreas e abstractas de lembrar as definições das
relações sociais, dizendo que se trata de um culto de espíritos, que é como
designamos tudo o que fica fora da História. Contudo, se nos recordarmos do
valor que o trabalho tem entre os seres humanos que se vêem e sabem parte da
Natureza, apercebemo-nos da necessidade que a ideia de pecado envolve, de
distinguir para entender, na relação homem-natureza.
A primeira parte da taxinomia consiste em
manter os indivíduos submetidos ao grupo: o próprio conceito de pecado deriva
do amor, isto é, a caridade entre os homens e para consigo próprios, expresso
no amor da divindade. Quem rompe a lealdade com o grupo, fica exposto da forma
como ficou Caim, Salomão, Jesus, Judas, Pedro, Thomas Becket, entre outros. No
entanto, existe uma forma de romper por traição, e, a forma de romper porque o
grupo se torna pouco razoável; ainda que nos dois casos se sofra, só a traição
é castigada porque mata o entendimento entre todos, hierarquizado como é. Uma
segunda parte, é o cuidado com as virtudes que a partir da divindade os homens
enumeram, numa projecção das suas próprias potencialidades com as quais a
revestem: justiça, paz, bondade, omnipotência, contidas no homem. Uma terceira
parte da taxinomia, é a submissão à hierarquia do grupo que trabalha, onde há
uma correlação entre dar a vida, ter recursos, saber administrá-los e aceitar a
subordinação aos que sabem e entregaram o conhecimento e os bens que asseguram
a continuidade social. Uma quarta parte da taxinomia, diz respeito à
compreensão dos corpos, o seu cuidado e o seu objectivo, onde se define o
entendimento da sua gestão, não só para mantê-los vivos, bem como para não
desgastá-los. Ao mesmo tempo, uma quinta parte classifica os bens com que os
corpos trabalham e os retira aos que não possuem entendimento ou legitimidade.
Uma sexta parte refere-se à reputação das pessoas que circulam entre as coisas,
já que sabem transformá-las, o que lhes confere um bom nome, quer dizer, um
destino entre os homens, um lugar garantido na estrutura enquanto mantenham o
seu saber, a fama que vem de preservar o contexto que guarda esse saber e as
condições em que o corpo pode materializá-lo. Finalmente, a sétima parte da
taxinomia é a sistematização das relações entre os homens, os seus grupos e as
suas coisas, de forma que ninguém subtraia a outro o que facilita e permite a
sua reprodução.
A garantia de tudo isto está na criação das
transgressões que durante muito tempo foram castigadas em nome da divindade cá
na terra, enquanto que no Céu se viria a fazer como Deus entendesse. A história
recente do Ocidente, com o seu antecedente de abstrair os seres humanos segundo
uma concepção do trabalho que se entende primeiro e se faz depois – alma e
corpo – mostra as consequências da transgressão.
Economia
Parece-me que tais consequências se
encontram na economia, como domínio independente, ou talvez tornado
independente, da religião. O pensamento do Ocidente começa a preocupar-se com
as coisas quando cria uma outra força para o trabalho que segue estritamente as
regras da invenção humana, aplicada agora de forma não subjugada ao movimento
natural. A luta mais esclarecedora é a discussão entre os fisiocratas e a
burguesia no seu interlúdio revolucionário de 1791. Talvez seja tão importante
como a da sistematização de elementos que se encontravam dispersos e que
permitem a Ricardo formular a lei que orienta a criação do valor, enquanto Marx
os usa para explicar a História. Assim, temos as várias lutas.
A economia passa a ser a teoria do
trabalho quando os bens adquirem movimento próprio escapando das mãos dos
homens como mercadorias, e o conhecimento se especializa em qualificar a força
de trabalho. A teoria que sistematiza a acumulação vem já do entendimento de
que, obter o trabalho dos outros, quer dizer, não tratá-los como iguais,
decorre da caridade não cumprida. A própria acumulação é um entesouramento onde
apenas se armazena o coração e os sentidos, se isso a torna possível.
Entende-se que o corpo sem cuidados e sem comida, sem recursos, acaba por não
estar em condições de trabalhar e, usando o artifício de transpor o respeito
pelas coisas, pessoas e prestígios de outros para alguns por meio da lei civil,
inverte-se a realidade que sistematiza o religioso, acabando por fazer desta
forma uma figura verdadeiramente de espelho. A economia valoriza o trabalho do
homem a partir dos mesmos factos pragmáticos com que a religião os estuda e
classifica: é da ética que vem o primeiro princípio da criação da riqueza, o
trabalho; enquanto que o segundo, o valor, pode dizer-se que vem da apreciação
da diligência, honestidade e cumprimento dos valores domésticos e familiares. O
terceiro resultado, a riqueza, acumulada ou lucro da bondade , que é o conceito
que subsume o saber usar os bens para os objectivos para os quais servem. É
aqui que a economia consegue a separação dos homens que entendem o trabalho
pela dor, a riqueza pelo milagre, a acumulação pelo respeito ao próprio corpo e
ao dos outros. Cria um conhecimento do movimento dos recursos, da sua produção,
circulação e consumo que escapa a quem não possui o entendimento dos princípios
com que se avalia o cálculo do que produzir, ao mesmo tempo que se gera uma
separação entre esse conhecimento e as pessoas, através do emprego de técnicas
para recordar princípios que não são apenas escritos, mas obedecem a formas de
registar por escrito depois de aplicar uma bateria de outros conhecimentos,
seja no movimento da produção industrial que obriga a desenvolver a teoria
económica, seja nas próprias regras e abstracções com que o saber económico é
produzido. Conteúdo e forma colocam o saber reprodutivo longe dos não
especialistas, tomando vantagem o proprietário que lucra através das formas de
entender os seres humanos pela sistematização funcional que o pecado ensina. A
economia funciona com a teoria do mal. (…)
A reprodução
social
O pecado sistematiza os elementos do real
que dinamizam o processo de reprodução da sociedade. Estes elementos são os
recursos que classificamos em pessoas, coisas, ideias e que estão contidos num
conhecimento herdado que gosto de chamar tecnologia. A relação entre todos
estes recursos, a matéria que tem de ser trabalhada, os homens que a trabalham,
as ideias que teorizam como trabalhá-la e que resultam de lidar com ela, formam
a teoria onde o conceito de pecado sistematiza e classifica a conduta social. Porém,
existe uma capacidade teórica mais ampla no conceito, que creio que deve ser
explorada: a capacidade de permanentemente reclassificar as pessoas. De facto,
a economia ao longo do tempo foi abstraindo as qualidades das actividades que
as pessoas desempenham, convertendo-as em ofícios. O lugar que uma pessoa ocupa
na estrutura social tem a haver com a apreciação do ofício que desempenha por
relação à forma reprodutiva mais importante do seu tempo; as qualidades com que
desempenha o seu ofício ou o trabalho parte do valor do conhecimento e
capacidade que se pode exigir da pessoa nos postos de trabalho. Durante a
vigência, ou dominância, no pensamento humano da ética económica da religião,
as condições pessoais do desempenho são avaliadas: seja a virtude que a
descreve a pessoa à propriedade, seja o cultivo do mal e da ideia de ser
pecador e de transgredir que se junta ao uso do corpo no trabalho. Na taxinomia
que propus, a pessoa que está mais perto da divindade é a que sabe que não usa
o seu corpo na produção, enquanto que mais perto da terra está quem só tem o
seu corpo para lidar com a Natureza. O pecador, sendo aquele que não tem
alternativa de conhecimento, é considerado ignorante e possui um lugar fixo nas
relações sociais: fora da estrutura dos justos, fazendo o trabalho mais bruto,
mais barato e mais “baixo”. É preciso ver a correlação entre o comportamento
classificado como pecado e a ausência de saber especializado em todos os campos
específicos da actividade, e este pecador específico é bêbado, o opulento, o
ignorante dos cuidados com o seu corpo e a sua saúde, o não diligente e o
subserviente. Não é o pecador geral que vive em tal estado porque tentou saber
e tornar-se independente da divindade, mas o específico que está associado à
natureza e à falta de sabedoria para controlar a sua capacidade. Esta é a
função do pecado desenvolvida pelas ideias económicas investidas na religião
pela letra da lei.
Raul Iturra, do
Aventar
Julho 2011
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