sexta-feira, 19 de julho de 2013

Práticas Religiosa em Portugal (IV)



 

4. Pontos de ruptura: aplicação variável das categorias religiosas ao trabalho.

É evidente que o paradigma denso e global que tenho vindo a apresentar como modo de resumir uma questão tão lata, tem tido e continua a ter inúmeras falhas. Quer isto dizer que, apesar do facto da ordem das coisas serem criadas pelas ideias construídas pelos camponeses e teologicamente subscritas pela Igreja, existe uma série de factos históricos que levam as populações a redefinir, de tempos a tempos, as suas crenças e práticas religiosas.
Até 1867, a propriedade, enquanto relação social, era essencialmente uma categoria do foro divino, tendo sido gradualmente humanizada em virtude do impulso liberal durante o século XIX. O laço pessoal necessário para se obter terra, vizinhança e tecnologia passou a amalgamar-se com a nova possibilidade de aquisição de terra pelos trabalhadores. Assiste-se a um movimento conducente à regulamentação civil da terra e do trabalho; a vontade individual ou a vontade autónoma com base contratual torna-se corrente, e objectos e produtos podem circular por vínculo à qualidade e não por vínculo ao dono da terra. A vontade autónoma tem, todavia, limitações ao nível da organização doméstica do trabalho, nos casos em que a ordem divina, baseada em princípios éticos, continua a regulamentar os comportamentos. Assim, a lógica das práticas religiosas é constituída por esta combinação, a diferentes níveis, da reprodução social e desta lógica, e, uma vez que se compõe de princípios éticos, está obviamente, incluída na regulamentação civil do comportamento social. Como já foi afirmado por Adam Smith (1759 e 1776), a produção da riqueza mais não é do que uma obrigação moral.

O fenómeno da propriedade tem, para os camponeses, uma influência nos conceitos de paternidade e de casamento. Há mais pessoas que se unem pelos laços do património em termos relativos, do que anteriormente. Isto quer dizer que o sistema de reprodução que tem combinado casamento, celibato e bastardia como estratégias para a comunidade do grupo social, se inclina mais para o casamento e menos para a bastardia, enquanto que o celibato deve ser tratado actualmente num capítulo diferente, a par da emigração. Entretanto, esta tendência tem trazido para a aldeia um novo conceito de paternidade que difere na forma, mas  não no conteúdo do conceito estabelecido pela religião oficial. Passa-se a poder distinguir o pai biológico do pai social e do pai ritual. O primeiro, é responsável pela gravidez da mulher, tornando-se muitas vezes, também pai social através do casamento; o segundo, é aquele que se responsabiliza pela família, na qualidade de marido da mãe; enquanto que o terceiro é pai delegado, que substitui o pai biológico, quando este não pode ser pai social. Por outras palavras, durante um longo período e até 1867, data da publicação do primeiro Código Civil Português – e antes das suas reformas – , muitos homens e mulheres não contraíam casamento e, quando tinham filhos, registavam a descendência como ilegítima de pai e mãe. Quando os filhos ilegítimos passam a ter direito aos bens do pai porque reconhecidos como filho ou filha, o nome do pai é retirado do registo nessa qualidade, passando a aparecer como padrinho. Isto é, vai estabelecer-se uma filiação espiritual que não confere direitos de herança à descendência, mas que vela, contudo, para que seja assistida com os devidos cuidados. Mais tarde, e ainda hoje isto acontece, os padrinhos dos bastardos passaram a ser normalmente os meio-irmãos do pai ou mesmo os seus filhos adultos através do casamento. Desta forma, as pessoas adicionais produzidas por motivos de mão-de-obra ou de paixão, são também protegidas por razões morais, embora de forma a não comprometer o património; no entanto, estão ambos salvaguardados. Os princípios da reprodução abençoada pelo casamento, e outros princípios a ela associados, são assegurados moralmente de outro modo e assim “a falta é reparada”.

Podemos citar como outros exemplos de manipulação, o casamento proibido entre pessoas com um determinado grau de parentesco, excepto pais, filhos e irmãos, que constitui a grande maioria de matrimónio em muitas aldeias, ao ponto do casamento com primos ter constituído regra em certas épocas históricas, ou a importação de maridos para engravidar as mulheres quando os homens da aldeia emigram, indo assim ao encontro não só da apropriação dos recursos disponíveis como do desenvolvimento do ciclo doméstico.
Muito mais exemplos poderiam ser mencionados, porém a minha intenção resume-se na ideia das práticas religiosas como resultado de um sistema de relações sociais e de relações de propriedade, nos casos em que estas são simplesmente uma prática pública das normas e valores que constituem a racionalidade do trabalho camponês. É por isso que o factor religioso é importante em Portugal: é um modo de pensar, uma mentalidade para organizar a vida na base de um processo assente em princípios divinos e manipulados, todavia, sempre que necessário pela interacção social.

(FIM)

Raul Iturra
Jul. 2011
do Aventar

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