4. Pontos de ruptura: aplicação variável
das categorias religiosas ao trabalho.
É evidente que o paradigma denso e global
que tenho vindo a apresentar como modo de resumir uma questão tão lata, tem
tido e continua a ter inúmeras falhas. Quer isto dizer que, apesar do facto da
ordem das coisas serem criadas pelas ideias construídas pelos camponeses e
teologicamente subscritas pela Igreja, existe uma série de factos históricos
que levam as populações a redefinir, de tempos a tempos, as suas crenças e
práticas religiosas.
Até 1867, a propriedade, enquanto relação
social, era essencialmente uma categoria do foro divino, tendo sido
gradualmente humanizada em virtude do impulso liberal durante o século XIX. O
laço pessoal necessário para se obter terra, vizinhança e tecnologia passou a
amalgamar-se com a nova possibilidade de aquisição de terra pelos
trabalhadores. Assiste-se a um movimento conducente à regulamentação civil da
terra e do trabalho; a vontade individual ou a vontade autónoma com base
contratual torna-se corrente, e objectos e produtos podem circular por vínculo
à qualidade e não por vínculo ao dono da terra. A vontade autónoma tem,
todavia, limitações ao nível da organização doméstica do trabalho, nos casos em
que a ordem divina, baseada em princípios éticos, continua a regulamentar os
comportamentos. Assim, a lógica das práticas religiosas é constituída por esta
combinação, a diferentes níveis, da reprodução social e desta lógica, e, uma
vez que se compõe de princípios éticos, está obviamente, incluída na
regulamentação civil do comportamento social. Como já foi afirmado por Adam
Smith (1759 e 1776), a produção da riqueza mais não é do que uma obrigação
moral.
O fenómeno da propriedade tem, para os
camponeses, uma influência nos conceitos de paternidade e de casamento. Há mais
pessoas que se unem pelos laços do património em termos relativos, do que
anteriormente. Isto quer dizer que o sistema de reprodução que tem combinado
casamento, celibato e bastardia como estratégias para a comunidade do grupo
social, se inclina mais para o casamento e menos para a bastardia, enquanto que
o celibato deve ser tratado actualmente num capítulo diferente, a par da
emigração. Entretanto, esta tendência tem trazido para a aldeia um novo
conceito de paternidade que difere na forma, mas não no conteúdo do conceito
estabelecido pela religião oficial. Passa-se a poder distinguir o pai biológico
do pai social e do pai ritual. O primeiro, é responsável pela gravidez da
mulher, tornando-se muitas vezes, também pai social através do casamento; o
segundo, é aquele que se responsabiliza pela família, na qualidade de marido da
mãe; enquanto que o terceiro é pai delegado, que substitui o pai biológico,
quando este não pode ser pai social. Por outras palavras, durante um longo
período e até 1867, data da publicação do primeiro Código Civil Português
– e antes das suas reformas – , muitos homens e mulheres não contraíam
casamento e, quando tinham filhos, registavam a descendência como ilegítima de
pai e mãe. Quando os filhos ilegítimos passam a ter direito aos bens do pai
porque reconhecidos como filho ou filha, o nome do pai é retirado do registo
nessa qualidade, passando a aparecer como padrinho. Isto é, vai estabelecer-se
uma filiação espiritual que não confere direitos de herança à descendência, mas
que vela, contudo, para que seja assistida com os devidos cuidados. Mais tarde,
e ainda hoje isto acontece, os padrinhos dos bastardos passaram a ser
normalmente os meio-irmãos do pai ou mesmo os seus filhos adultos através do
casamento. Desta forma, as pessoas adicionais produzidas por motivos de
mão-de-obra ou de paixão, são também protegidas por razões morais, embora de
forma a não comprometer o património; no entanto, estão ambos salvaguardados.
Os princípios da reprodução abençoada pelo casamento, e outros princípios a ela
associados, são assegurados moralmente de outro modo e assim “a falta é
reparada”.
Podemos citar como outros exemplos de
manipulação, o casamento proibido entre pessoas com um determinado grau de
parentesco, excepto pais, filhos e irmãos, que constitui a grande maioria de
matrimónio em muitas aldeias, ao ponto do casamento com primos ter constituído
regra em certas épocas históricas, ou a importação de maridos para engravidar
as mulheres quando os homens da aldeia emigram, indo assim ao encontro não só
da apropriação dos recursos disponíveis como do desenvolvimento do ciclo
doméstico.
Muito mais exemplos poderiam ser
mencionados, porém a minha intenção resume-se na ideia das práticas religiosas
como resultado de um sistema de relações sociais e de relações de propriedade,
nos casos em que estas são simplesmente uma prática pública das normas e
valores que constituem a racionalidade do trabalho camponês. É por isso que o
factor religioso é importante em Portugal: é um modo de pensar, uma mentalidade
para organizar a vida na base de um processo assente em princípios divinos e
manipulados, todavia, sempre que necessário pela interacção social.
(FIM)
Raul Iturra
Jul. 2011
do Aventar
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