sexta-feira, 5 de julho de 2013

Práticas religiosas em Portugal (III)



 

3. Santos e Ritual

Aquilo que denominei ciclos míticos do tempo, poderá ser complementado com o relato de um certo número de ritos, teológicos e sociais, celebrados ao longo do ano.

Os santos constituem uma invenção com muito sucesso em Portugal, como de resto em toda a parte do mundo católico romano. Muitos têm poderes curativos, outros aparecem associados a determinadas instituições e em alguns casos com a justiça e a honestidade. Em geral, pode-se dizer que são todos resultado do investimento de ideias num símbolo material, que serve uma finalidade de memória numa tradição rural e oral de conhecimentos. Sem nos esquecermos que o saber iconoclasta tem largas tradições na Europa, interessa interpretar o significado destes símbolos num determinado tempo histórico. Uma vez mais nos vemos confrontados com a materialidade do trabalho do campo, pela qual um grande número de recursos está ou tem estado liberto do controlo humano. Um desses recursos é a saúde, e, para velar por ela podem-se encontrar um grande número de santos e de cultos em todo o território cristão de Portugal. Os santos têm a sua especialidade própria e a história da sua vida é associada a uma capacidade curativa. S. Bartolomeu, por exemplo, que foi esfolado e frito no século I D.C., é o paradeiro das doenças de pele, mas é igualmente, o advogado dos marinheiros noutros locais, sendo ainda completamente ignorado noutros pontos do país. Assim sendo, penso que o que interessa é verificar que as ideias das pessoas são antropomórficas e distribuídas por uma vasta gama de santos com implantação desigual no território cristão. Algumas vezes um santo exerce diversas funções, noutros casos a história da sua vida é atribuída a qualquer outra imagem. Em geral, os santos, embora profundamente enraizados na tradição, não são historicamente identificados pelo povo, embora os seus poderes sejam largamente conhecidos. Trata-se de uma área, por assim dizer, em que a invenção histórica é mais importante que a definição teológica, uma vez, que o que as pessoas procuram neles é, não o seu grau de santidade, mas o seu grau de eficiência em relação a determinado grupo social. É evidente que tem havido alguma intervenção política em relação a certos santos ou em torno dos seus milagres, dando relevo a uma determinada actividade sobrenatural em detrimento de outras. Contudo, o que julgo ser relevante, é o facto de existir uma imaginação sociológica que vai criar um fenómeno que ajuda a regular, suplementar ou resolver um determinado número de problemas materiais que afligem as pessoas. Ou simplesmente tem a função, ou expressa a necessidade de um encontro ou reunião periódica, como celebração prática da dimensão legal que regula as relações entre as pessoas e os recursos, nomeadamente justiça ou igualdade, como referi quando falei das leis canónicas. Para uma sociedade que durante muitos séculos teve acesso aos recursos através de laços pessoais, o santo pode servir eficazmente a finalidade da práticas e da concentração das virtudes necessárias para alcançar os dois senhores: o terreno e o eterno. Para além disto, os santos representam ainda um modo de manipular a realidade ou até mesmo de mobilizar politicamente as massas, meios que, à semelhança de feitiçaria e da magia, são utilizados quando outros mais pragmáticos deixam de existir. Se tal acontecer, poder-se-á então explicar as diferentes descrições históricas dos milagres e as diferentes capacidades atribuídas aos santos através do tempo e do espaço.

O ritual é já uma questão diferente. Acompanha os ciclos de vida individual e os seus parâmetros são fixados pela Igreja Romana. Quando falo de ritual neste contexto, quero significar a organização sacramental da vida que julgo contribuir para a definição das relações sociais. Rito significa também ajudar as pessoas a saber o que está certo e o que está errado, com quem devem estabelecer alianças e como evitar outras, pois é isto, na verdade, o conteúdo da doutrina.

É através do Baptismo que a filiação do indivíduo é tornada pública e reconhecida, que se define quem são os seus parentes, colocando-o assim dentro de uma escala de categorias permitidas e interditas com vista ao estabelecimento de alianças matrimoniais. A definição da filiação contribui também para o estabelecimento dos direitos patrimoniais. Finalmente, o baptismo concede aos indivíduos uma paternidade extra, pois fixa um tipo de parentesco ritual que se combina com os vínculos biológicos, variando em importância através dos tempos. A paternidade ritual cria uma ligação de facto entre pais, padrinhos e afilhados. Este facto vem a ser expresso mais tarde na vida em trocas de riqueza, primeiro entre padrinhos e pais, mais tarde entre padrinhos e afilhados; estes últimos irão, por vezes, trabalhar e dar assistência aos seus padrinhos por dever moral rectificado por um crédito de aceitação entre todos os intervenientes. Em resumo, o baptismo é um rito classificatório que torna pública a filiação, tanto legítima como ilegítima, alarga os laços de parentesco e coloca o indivíduo dentro de uma escala possível de categorias matrimoniais.

O Baptismo introduz também o indivíduo num sistema de relação oficial sancionado tacitamente pela Igreja; a entrada oficial naquilo que se pode chamar comunidade aldeã é dificultada ou mesmo impedida, se o indivíduo não pertence à estrutura da Igreja: os não baptizados, por exemplo, não poderão contrair matrimónio, o que significa que lhes é interdito o direito legal à procriação. E não pode contrair matrimónio porque não pertence à comunidade daqueles que vivem e trabalham dentro dos limites geográficos da aldeia. Este status tende a permanecer muito rígido enquanto o sistema de trabalho se basear em laços pessoais, é fácil ver a relação existente na cadeia do não baptizado, não casado, sem vida sacramental, sem terra, jornaleiro e, finalmente classificado de «pobre» e alcunhado de «mouro», ou seja, de inimigo da religião e da Igreja Católica Romana. No momento actual em que a maior parte das pessoas possui a sua própria terra, este risco de iniciação é, obviamente, mais praticado, pois que a existência de um património traz consigo a necessidade de uma classificação clara de vínculos e alianças.

O Casamento é um rito classificatório semelhante, como já referi noutra ocasião. Depois da filiação ter sido claramente definida e registada em livro próprio, em 1867 mesmo os avós eram registados, e assim clarificada a rede de casamentos possível, o problema surge quando se procede a circulação de pessoas no território. O Casamento dispersa os homens e as mulheres pela terra ou por outros lugares, fixa uma nova categoria de parentes – os afins – e estabelece a base para a transmissão dos recursos produtivos, eliminando ao mesmo tempo tabus sexuais criados para o controlo da fertilidade humana. Ao mesmo tempo este rito, que declara que os bens de um homem ou de uma mulher passam a estar sob uma administração única e serão transmitidos aos filhos, com quem trabalharão toda a vida, tira a possibilidade de desentendimento ao casal e de ruptura do casamento, pois que, afinal foi Deus que os uniu, ao proclamarem o desejo dessa união. O mesmo Deus ajudará com riqueza a descendência apta a trabalhar, enquanto a promessa for mantida, mas torná-los-á pobres no caso de rompimento. Na realidade, durante anos não se registaram praticamente divórcios entre a população rural e existe também a aceitação pragmática de que a separação, quando acontece de facto, destroi a unidade laboral e o ciclo de desenvolvimento não atinge o ponto de transmissão de conhecimentos, recursos materiais e cuidados. Um novo modo de organização do trabalho, com os membros mais idosos da família tem de ser estabelecido, ou então restar-lhes-á o trabalho solitário da terra, só com a ajuda das criança. O Casamento torna-se a materialidade da produção de trabalhadores e da sua formação, constituindo um bureau de pessoal, uma vez que submete toda a capacidade de organização laboral ao pai e os cuidados das crianças à mãe. Em muitos locais o Casamento abre as portas à riqueza, quer através de dotes que dão possibilidade ao novo casal de se estabelecer, quer pelo estabelecimento de acordos patrimoniais para o futuro. É possível observar como o casamento e a produção de um primeiro filho pelo filho mais velho da casa irá definir um direito mais claro à herança que outras vias.

Entre Baptismo e Matrimónio, considerados como práticas religiosas, têm lugar os rituais da Confissão, Comunhão ou Eucaristia e a Confirmação, os dois primeiros praticados pela primeira vez por cada criança entre os 7 e os 10 anos, e depois repetidos pelo  menos uma vez por ano até à morte. Às crianças ser-lhes-á administrada a doutrina ou verdade revelada que, juntamente com a definição da lei canónica, pertence à ordem natural das coisas, tal como foi estabelecida pela divindade. Isto é, as crianças são introduzidas num corpo oral de conhecimentos que tem como finalidade estruturar um conjunto de relações sociais os valores através dos quais estas são veiculadas. Esta doutrina começa com a definição de que a felicidade é um valor a ser alcançado, que todos nós desejamos, mas que não é possível obter sem se pertencer a Deus, isto é, a um sistema de graça e circulação divinas. É esse Deus, essa vontade exterior, que providenciará felicidade se os homens se mantiverem dentro dos parâmetros de comportamento permitidos: aceitar Deus na sua categoria de Criador, admitir que os seres humanos não valem rigorosamente nada porque são pecadores, que têm de ser redimidos através do sacrifício de Cristo; redenção essa, a cargo do Espírito Santo, e que, por tudo isto é  necessário mantermo-nos afastados do pecado através da prática de um certo número de virtudes, nomeadamente: humildade, ajuda mútua, castidade, autocontrolo, fortaleza e diligência. De facto, a doutrina é uma combinação de definições de relações, tanto teológicas como práticas, em que as obrigações materiais surgem sancionadas ou perdoadas através de acções que pertencem à dimensão mítica do tempo. Por outras palavras, a doutrina é um corpo de conhecimentos que, oralmente repetido por toda a população, estabelece a base de um código de conduta que acaba por constituir um sistema fechado de conhecimentos que, em conjunto com a distribuição divina da riqueza dos senhores e dos pais aos trabalhadores e à geração seguinte, e pela manipulação do mundo material em relação com o tempo mítico, constitui um universo de referência dentro do qual as práticas religiosas são simplesmente um resultado público razoável desta organização racional da produção. Em tudo isto, os ritos do clero ajudam a administração dos laços mútuos entre as dimensões material e ideal utilizadas no trabalho do campo por meio do poder da palavra escrita e da explicação dos textos sagrados – a memória do povo, o padre.

O corpus total de conhecimentos que tem orientado a conduta dos camponeses foi preservado até há bem pouco tempo (anos 60) como texto sagrado, ao qual só é possível ter acesso através de estudos no seminário. E mesmo assim, toda a ciência era administrada a um simples padre. Há toda uma série de classificações de pescas em relação com o saber, e, consequentemente, como o poder através da palavra, daí as hierarquias do clero, que vão dos diáconos aos padres, abades, reitores, doutores, bispos e cardeais. Cada uma delas tem direitos diferentes sobre as pessoas, no que se refere às definições das suas relações e da sua permanência no corpo dos fiéis, isto é, entre aqueles que têm acesso à comunhão, à terra e ao trabalho, assim como ao lugar que cada um ocupará na vida do além. O mistério tem constituído a pedra basilar do sagrado: a palavra escrita que se apresenta como verdade revelada num mundo de tradição oral, com um argumento teológico num mundo de ordem natural pragmático, salvo da natureza e definido como divino, palavra essa que define acesso aos recursos, aos outros seres humanos e a um sistema de circulação da riqueza que, no fim, misturado como está com a verdade revelada, o camponês tem de compreender, pois é ele o trabalhador. Por esta razão, o mistério é revelado através da confiança na pessoa que o explica: padres rurais que possuem bens, comem e bebem como os demais e até muitas vezes se acasalam e produzem filhos. Isto é, a humanização do poder político que tem dominado a terra e controlado a riqueza tornou-se para eles um sistema ideal de relações que se adequa bem aos novos detentores da terra, o campesinato português que se estabeleceu recentemente em terra própria. Uma vez que a relação com os meios de produção permaneceu idêntica, o sistema de prática religiosa tem conhecido uma expansão à medida que aumenta a participação activa na produção rural de bens económicos, para a qual é desejável um bom ajustamento das leis civil e canónica. Assim, não é só o clero que se humaniza, também a prática do ritual é mais divulgada em paralelo com o controlo dos recursos que o camponês de Portugal conseguiu obter. Controlo, todavia, baseado num sistema laboral para o qual a lei canónica e a verdade revelada, ou ordem divina, se continuam a aplicar espantosamente como racionalidade reprodutiva. (…)

Raul Iturra
Jul.2011
do Aventar

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