sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Falar, entender…as crianças (IV)





"Esta citação revela o império do desejo de entender que a relação cultura – indivíduo, não é apenas uma problemática denominada por Kraepelin um problema civilizacional, é apenas, como referi antes, uma relação de interacção social entre as leis que governam o comportamento humano, orientam a educação dos mais novos e desenvolvem um adulto capaz de se separar da vida social, por mutações biológicas causadas na base de situações emotivas contraditórias, manifestadas pelo adulto, como no caso das formas rituais paranormais de amok, lata, koro, comportamentos que observa nas culturas citadas no parágrafo anterior e redige no seu texto de 1904: Psychiatrie comparée [23], onde refere formas de agir perante o que eu denominaria a traição da cultura ao indivíduo que, até essa altura, vivia em paz, no meio dos ditames da lei escrita ou tradicional, rituais e mitos, sentimentos definidos e formas materiais de os exprimir que não feriam as relações das pessoas entre si, sempre que essa forma de agir prescrita for cumprida. Situações observadas, sentidas e a desenvolver sentimentos na educação dos mais novos. Eis o motivo pelo qual os organicistas não se ocupam apenas com processos de transtorno mental, mas também de teorias educativas, da forma observada por Edwin Guthrie, Melanie Klein, François Dolto e os outros terapeutas referidos.

Formas educativas que procuram dar a entender que não é apenas a relação entre adultos e descendentes de uma mesma família o facto social de importância para a resposta epistemológica da criança perante o grupo, também o é o comportamento do grupo em frente de si próprio, grupo que inclui os mais novos como a parte maior e mais vulnerável e que a pouco e pouco reparam, na sua autonomia e independência perante a vida, sem poder ser independente da alimentação e do carinho que os outros indivíduos devem dispensar. Dai que a criança não seja um subentendido: a criança não entende o que se fala e fica mais exposto ao que vê fazer de diferente aos costumes culturais. Este é o contributo que Kraepelin retirou de Java e abriu um caminho para que os eruditos da mente pudessem comparar e retirar formas de comportamentos convenientes à formação do indivíduo. É impossível não sintetizar os comentários que aparecem no livro, esse pioneirismo de reparar [24]em dois conceitos fundamentais para a nossa análise: o etnocentrismo que acaba por ser o elo que orienta o comportamento: o que nós somos é o melhor, ou o que fazem os outros é com eles; o peso do comportamento cultural e a sua manipulação, que acaba por ter um limite, o da racionalidade emotiva do comportamento entre pessoas. O etnocentrismo define tabus e dinâmicas de comportamentos, traça a linha limite das formas de reprodução humana no saber e entre quais das pessoas da população a afectividade é possível e a relação empática define-se como simpática ou antipática. É o que os autores que introduzem Kraepelin manifestam.

Roudinesco e Plon consideram que “historiquement, l’ethnopsychoanalyse est née de l’ethnopsychiatrie fondé par Emil Kraepelin », texto no qual concluem que a etnopsicologia « c’est l’expresion trnasculturelle qui a fini par s’imposer en lieu et en place d’ethnopsychiatrie ou d’ethnopsichoanalyse, trop chargé d’ethnocentrisme[25]. Segundo ponto que queria comentar antes de entrar pelo texto das idades da criança e do seu entendimento do mundo: uma definição de Etnopsicologia para entendermos a parte do processo educativo que a Etnopsicologia da infância trata e que fica referido nas páginas anteriores, com o acréscimo do etnocentrismo, conceito fundamental para nos entendermos com a infância. Etnocentrismo definido mais tarde por Claude Lévi-Strauss a pedido da UNESCO e que teria feito as delícias do autor da Etnopsicologia[26] que acabou por dedicar a sua obra a relações de imigração para entender de forma comparativa as formas de pensamento, fossem estes etnocêntricos ou a fugir das formas mandadas pela interacção social: o etnocentrismo é o desenvolvimento do meu Eu entre os meus, ou do meu grupo social, regras, normas e, especialmente, o fechar as relações aos “selvagens” ou pessoas que vivem à beira do nosso agir, com regras não aceites por nós, ou, pelo menos, para nós, apenas para os outros, enquanto que “indígena” é o habitante natural de um grupo que tem a sua geografia e os seu território, que defende por todos os meios, até pela guerra ou pela união parental.

Há um terceiro e final comentário do próprio Freud sobre a temática. Discípulo de Wundt na Alemanha, influenciado por Kraepelin e os outros intelectuais germânicos, Freud não consegue não comparar as suas análises sobre a história e processo formativo das neuroses e a histeria, sem estudar grupos australianos com os quais compara a conduta europeia. O resultado é o texto Totem and taboo. Some Points of Agreement Between the Mental Lives of Savages and Neurotics, escrito em 1913[27]. O texto de Róheim que tenho invocado, diz: «Si nous avons commencé cette partie en nous référant à la définition même de Freud, c’est pour souligner le fait que l’ethnopsychanalyse n’est pas une discipline nouvelle ; elle est contenue dans la psychanalyse. Elle est une facette et plus précisément (et en premier approximation) celle que questionne l’interface entre psychisme et culture…».[28]. É assim, comenta o escritor, como Freud se afasta da clínica para entrar no modelo comparativo de comportamentos nem sempre da sua cultura. Um Freud, como comenta o texto que tenho preparado sobre La Psychanalyse Française [29], que coloca o autor fora do campo analítico francês, ferozmente antijudaico para aceitar as ideias filosóficas do autor. No entanto, são ideias que ajudam a perceber essa diferença epistemológica que permite dizer que se pode falar perante as crianças, porque não entendem. Muito embora o caso contrário seja também real: o que a criança diz, não é percebido pelos adultos."

FIM


Raul Iturra

Julho 2011

Aventar

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