sexta-feira, 7 de março de 2014

A esquerda sem povo


"1. O divórcio entre a esquerda e as classes populares não é um fenómeno novo. Os sinais de alarme é que passaram a soar com uma intensidade inédita, graças à passagem do voto popular para formações populistas e eurocépticas num grau sem precedentes. A Frente Nacional, de Marine Le Pen, é o primeiro partido popular francês, designadamente entre os operários: 40% dizem rever-se nas suas ideias. Poderíamos também referir a Itália. Nas eleições de Fevereiro, o Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, conquistou 40% do voto operário, à frente de Berlusconi, com 25,8%, e da coligação de centro-esquerda reunida em torno do Partido Democrático, com 21,7%. O PSF francês, o PSOE espanhol, o PD italiano ou o PS português, ainda que invocando sempre “o povo”, não são vistos como “partidos populares” mas como partidos das classes médias.

A questão pode ser formulada de outra maneira: que responsabilidade tem a esquerda nos surtos populistas? Escutemos duas opiniões. Escreveu em 2012 o politólogo francês Laurent Bouvet no livro Le Sens du peuple: la gauche, la démocratie, le populisme: “Ao longo da última década, um pouco por toda a Europa e com ganhos no plano eleitoral, [a extrema-direita] foi ao encontro de aspirações populares abandonadas pela esquerda: o trabalho, a identidade nacional, o modelo de autoridade sócio-familiar, o sentido de pertença e de protecção colectiva.” Os “sem-papéis” e as minorias identitárias ou culturais tornaram-se para a esquerda “um povo de substituição”. Concluía: “A esquerda perdeu o povo e tem medo do populismo.”

Algo de semelhante dissera, 15 anos antes, o historiador e jornalista Jacques Julliard: desmoralizado e abandonado pelas elites, o povo perdeu a sua bússola e a sua identidade para mergulhar no populismo. Acusava as elites políticas e tecnocráticas da esquerda — e também aqueles revolucionários “que mudaram de proletariado nos anos que se seguiram a 1968. Substituíram os operários pelos imigrantes e passaram para estes o duplo sentimento de temor e de compaixão que o proletário geralmente inspira.” Observava sobre o tema da segurança: “As classes populares não são por natureza mais conservadoras ou repressivas; são as mais expostas, eis tudo” (La Faute aux élites, 1997). Cinco anos depois, Jean-Marie Le Pen afastava o socialista Lionel Jospin da segunda volta das presidenciais.

2. Muito se tem escrito sobre a nocividade da crise financeira para os partidos socialistas ou social-democratas, mais atingidos do que os conservadores por terem mais dificuldade em formular um projecto próprio para a enfrentar. Mas a crise da social-democracia, de natureza estrutural, é mais antigo. De forma sumária, pode dizer-se que a social-democracia entrou em declínio no fim dos anos 1970 quando se começou a romper a aliança entre as novas classes médias urbanas e a classe operária. Esta “coligação” assentava num crescimento económico acelerado — “os trinta anos gloriosos” — na promoção social e na criação do Estado-providência. O modelo de crescimento foi posto em causa após o “choque petrolífero” de 1973. O keynesianismo que a ele presidira começou a dar lugar ao neoliberalismo — Reagan e Thatcher.

Como efeito da “era pós-industrial” e, mais tarde, da globalização, a classe operária viu-se “atacada” em termos absolutos e relativos, arrastando consigo o declínio sindical. O Estado-providência começou a ser corroído. O “elevador social” desacelerou. A sociedade tendeu a polarizar-se entre beneficiários e perdedores da globalização. Esta mudança abriu um debate nos partidos socialistas ou social-democratas. Como recompor a esquerda política? Uma das tentativas foi a “terceira via” de Tony Blair, hoje esgotada. Na França ou na Espanha, parte da esquerda tem-se proposto, desde o fim dos anos 1990, transferir os esforços de “transformação social” para a esfera dos direitos individuais.

3. O debate foi reactualizado na preparação da candidatura de François Hollande. Em Maio de 2011, o think tank socialista Terra Nova, constatando que “a social-democracia perdeu a sua base eleitoral” e que na origem da fractura está uma mudança de valores, propôs a construção de “uma nova maioria eleitoral” excluindo as “categorias populares”. Vale a pena rever a argumentação: “Historicamente, a esquerda política reflectia os valores da classe operária, os económico-sociais e os culturais. (...) A partir do fim dos anos 1970, a ruptura vai fazer-se em torno do factor cultural. O Maio de 68 arrastou a esquerda para o liberalismo cultural: liberdade sexual, contracepção, aborto, contestação da família tradicional. Este movimento sobre as questões da sociedade reforçou-se no tempo para se exprimir hoje em termos de tolerância, de abertura às diferenças e uma atitude favorável perante os imigrantes, o islão, a homossexualidade e a solidariedade com os excluídos. Paralelamente, os operários fizeram o caminho inverso. O declínio da classe operária — crescimento do desemprego, precarização, perda da identidade colectiva e do orgulho de classe, dificuldade de viver em certos bairros — leva-a a reacções defensivas: contra os imigrantes, contra os assistidos, contra a perda dos valores morais e as desordens da sociedade contemporânea.”

A ala esquerda socialista, antiliberal no plano económico, adoptou no plano social e cultural uma linha liberal e multiculturalista. Seria através de temas “societais” ou “fracturantes” — do casamento gay ao voto dos imigrantes nas eleições municipais  — que a esquerda deveria conquistar a hegemonia. O espanhol José Luís Zapatero explorou este filão para assegurar a coesão da esquerda perante a direita. Mas não logrou encobrir a impotência no plano económico, o que redundou na catastrófica derrota eleitoral de 2011."[...]

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