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António Campos
Boa parte de nossa
infelicidade ou aflição nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados
ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da
Antiguidade grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso
inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo
temeroso. Inventam-se os mitos, ou deixamos que aflorem, e construímos em cima
deles a nossa desgraça.
Por exemplo, o mito da
mãe-mártir. Primeiro engano: nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe
é mártir. Muitas são algozes, aliás. Cuidado com a mãe sacrificial, a grande
vítima, aquela que desnecessariamente deixa de comer ou come restos dos pratos
dos filhos, ou, ainda, que acorda às 2 da manhã para fritar (cheia de rancor)
um bife para o filho marmanjo que chega em casa vindo da farra. Cuidado com a
mãe atarefada que nunca pára, sempre arrumando, dobrando roupas,
escarafunchando armários e bolsos alheios sob o pretexto de limpar, a mãe que
controla e persegue como se fosse cuidar, não importa a idade das crias. Essa
mãe certamente há de cobrar com gestos, palavras, suspiros ou silêncios cada
migalhinha de gentileza. Eu, que me sacrifiquei por você, agora sou abandonada,
relegada, esquecida? E por aí vai...
Ou o mito do bom
velhinho: nem todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se não
acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos
vários, seremos velhos rabugentos que afastam família e amigos. Nem sempre o
velho ou velha estão isolados porque os filhos não prestam ou a vida foi
injusta. Muitas vezes se tornam tão ressequidos de alma, tão ralos de emoções,
tão pobres de generosidade e alegria que espalham ao seu redor uma atmosfera
gélida, a espantar os outros.
E o mito do homem
fortão, obrigado a ser poderoso, competente, eterno provedor, quando esconde
como todos nós um coração carente, uma solidão fria, a necessidade de
companhia, de colo e de abraço – quando é, enfim, apenas um pobre mortal.
Falemos ainda no mito da
esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a
cerca, dizem: "Minha mulher é uma santa". Sinto muito, mas nem todas
são. Eu até diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre
reclamando, cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em
limpar, cozinhar, comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que
mantém a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços
abertos, coração cálido, compreensão, interesse e ternura.
O mito de que a
juventude é a glória demora a ruir, mas deveria. Pois jovem se deprime, se mata,
adoece, sofre de perdas, angustia-se com o mercado de trabalho, as exigências
familiares, a pressão social, as incertezas da própria idade. A juventude –
esquecemos isso tantas vezes – é transformação por vezes difícil, com
horizontes nublados e paulatina queda de ilusões. É fragilidade diante de
modelos impossíveis que nos são apresentados clara ou subliminarmente o tempo
todo.
Enfim, a lista seria
longa, mas, se a gente começar a desmitificar algumas dessas imagens
internalizadas, começaremos a ser mais sensatamente felizes. Ou, dizendo
melhor: capazes de alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer numa
vida produtiva, porque real.
Lya Luft
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