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António Campos
A família nuclear da sociedade de consumo,
criada nos anos 50 no século passado, desencadeou uma enormidade de
transformações que estão longe de se considerarem cristalizadas. Terão
contribuído múltiplos factores de diferente dimensão e sequência onde pesam: a
chegada da pílula que separou a reprodução do prazer sexual; a crescente
participação da mulher no mercado de trabalho e no sistema educativo que,
passadas estas décadas, mudou a face na decisão familiar, na representação dos
papéis, desde os educativos aos das decisões no consumo; a mudança de
significado para o casamento, para o amor romântico, o erotismo, a fidelidade,
a sexualidade feminina e a ideia de normalidade; e, não menos significativo, o
salto em diante depois da psicanálise que levou ao aparecimento da sexologia
que implicaram a revisão de conceitos estruturados sobre o género, identidade e
orientação, também matéria aprofundada pelas ciências médicas e as ciências
sociais.
Está alterada a estrutura familiar, as ideias de casamento e divórcio, vão sendo arredados preconceitos como o sexo na idade sénior. Líderes de opinião como Júlio Machado Vaz, Francisco Allen Gomes, José Gameiro e Daniel Sampaio têm conquistado alta posição na opinião pública explicando ou comentando esta sexualidade feminina, os novos desempenhos familiares, o que está em curso na identidade sexual. A mente do século XX ficou efectivamente marcada pelo “levantamento” da mulher e de inúmeras atitudes de libertação sexual a que a ascensão do individualismo deu novo impulso. Só esta luz também se pode compreender o associativismo de mulheres, o movimento homossexual e transgender, a diversidade de manifestações do comércio do sexo ou a violenta censura social sobre a pedofilia e a prostituição infantil.
“Ao Cair da Noite”, de Michael Cunningham
(Gradiva, 2010), é um romance soberbo que se debruça sobre um tabu: a atracção
entre dois cunhados. Escreve-se na contracapa: “Peter e Rebecca Harris, na casa
dos 40 e a viver em Manhattan, aproximam-se do seu apogeu das suas carreiras em
arte: ele, negociante, ela, editora numa boa revista da especialidade. Com um
moderno e espaçoso apartamento, uma filha adulta a estudar em Boston e amigos
inteligentes e animados, levam um invejável estilo de vida urbano contemporâneo
e parecem ter todas as razões para serem felizes. Mas é então que o irmão de
Rebecca surge em cena. Extremamente parecido com ela, mas muito mais novo,
Ethan resolve visitá-los. Na sua presença, Peter começa a pôr em causa os
artistas, o trabalho destes, a sua carreira – todo o mundo que construíra com
tanto cuidado”.
É um livro intenso e devastador, caldeado
pelo onírico, o apuro estético, a construção de personagens que palpitam na
hesitação da identidade. Peter e Rebecca são registados, do princípio ao fim,
como aquele casal que tem os problemas de toda a gente: a conciliação entre a
conjugalidade e a realização profissional; os escrúpulos quanto ao modo como
educaram a filha, a banalização nos actos íntimos do quotidiano. Conversam como
qualquer casal, é uma comunicação que não levanta problemas entre o que pensam
e como actuam. Michael Cunningham, hoje um autor consagrado e adaptado ao
cinema, arrebata pela beleza como constrói esses diálogos entremeados de longos
parágrafos sobre estados de espíritos ou olhares interiores, seja em torno do
sexo seja sobre as preocupações à volta das suas carreiras. Ele é em galerista
de média dimensão que representa artistas plásticos disputados; ela está numa
encruzilhada, a publicação que orienta está a ser procurada por vários
compradores. E de repente chega Ethan, conhecido na família como Mizzy, um
jovem problemático. Em flashback, o autor descreve a genealogia das famílias e
o seu relacionamento, é assim que Mizzy ganha contornos como ovelha
tresmalhada, a preocupação de três irmãs.
A dimensão cultural é avassalada pela vida
da galeria, as afinidades de Peter e o seu trato comercial com os artistas. É
uma narrativa tão cativante, absorvente e quase física, entramos na trama e
vivemos o dia-a-dia deste herói vacilante. Ficamos igualmente a saber que houve
problemas entre Peter e o seu irmão Matthew, que era homossexual e que já faleceu.
Como uma larva que cresce imperceptivelmente, a presença de Mizzy inquieta e
agita Peter. É neste contexto que decorre um dos episódios mais portentosos da
obra, quando Peter passeia à noite em Nova Iorque e conversa ao telefone com
Bea, a sua filha, é um diálogo intenso, somos forçados a vibrar com o seu
sentimento de culpa.
A atracção entre os dois homens avança
para o clímax, Mizzy confessa a sua paixão por Peter, este devaneia, parece
tentado a correr por essa pista perigosa, fatal sem retorno. Mizzy faz
chantagem, revela perversidade delinquência. O que até agora parece um drama
morno, de um insólito construído de heróis de pacotilha, ganha gigantismo no
frente a frente entre Peter e Rebecca. Ele está possuído pelo sentimento de
culpa, por não ter transgredido com Mizzy, pensa que Rebecca o irá repudiar por
tal atitude. Não, Rebecca está desfeita porque o irmão partiu, é um
toxicodependente sem remissão. Está desfeita porque o irmão disse que a adorava
e o que o inibira no seu crescimento. Num diálogo patético, Rebecca não esconde
a sua infelicidade e põe abertamente em causa se o casal não está à deriva.
Sim, o casal está completamente nu, com o íntimo esventrado, como escreve
Cunningham: “Qualquer coisa se ergue dentro de Peter, mais como uma planta a
ser arrancada por uma mão invisível do que uma levitação da alma.
Ele sente raízes semelhantes a pêlos a
extraírem-se da sua pele. Está a ser arrancado de si mesmo, a perder a casca do
eu, daquele homem triste e faminto, da figura de acção com os olhos mal
pintados e o fato de poliéster feito às três pancadas. Mas se ele tem sido uma
figura ridícula, também tem sido um acólito, um amante do amor, e as suas
pequenas cabriolas terrenas destinaram-se a apaziguar uma divindade, por muito
disparatada e inadequada que fosse a sua oferenda”. Face a face, o casal toma
conta do caminho que se percorreram até ali. Se falharam, só lhes resta tentar
de novo. Talvez não seja demasiado tarde. Antes de começarem essa tentativa,
Peter conta-lhe tudo o que aconteceu.
Esta é a relação tabu que Michael
Cunningham pretende desvelar, uma atracção meteórica que podia ter levado um
casal ao abismo. Eles têm cerca de 40 anos, estão em estado de dúvida, o álcool
da verdade vai começar a agir. “Ao Cair da Noite” é uma história de sobressalto
que só se pode entender à luz das transformações da sexualidade que nós
teimamos em fingir que é outro lado do que deve ser a normalidade. Uma
preciosidade literária em que o erotismo e a estética falam sobre o estado
amoroso do nosso tempo.
Beja Santos
Jan.2011
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