quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Amor, família, atracção e orientação sexual- O que mudou com a sociedade de consumo

NEW YORK, NY - MARCH 28:  (L-R) Musicians/film...
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António Campos



A família nuclear da sociedade de consumo, criada nos anos 50 no século passado, desencadeou uma enormidade de transformações que estão longe de se considerarem cristalizadas. Terão contribuído múltiplos factores de diferente dimensão e sequência onde pesam: a chegada da pílula que separou a reprodução do prazer sexual; a crescente participação da mulher no mercado de trabalho e no sistema educativo que, passadas estas décadas, mudou a face na decisão familiar, na representação dos papéis, desde os educativos aos das decisões no consumo; a mudança de significado para o casamento, para o amor romântico, o erotismo, a fidelidade, a sexualidade feminina e a ideia de normalidade; e, não menos significativo, o salto em diante depois da psicanálise que levou ao aparecimento da sexologia que implicaram a revisão de conceitos estruturados sobre o género, identidade e orientação, também matéria aprofundada pelas ciências médicas e as ciências sociais.

Está alterada a estrutura familiar, as ideias de casamento e divórcio, vão sendo arredados preconceitos como o sexo na idade sénior. Líderes de opinião como Júlio Machado Vaz, Francisco Allen Gomes, José Gameiro e Daniel Sampaio têm conquistado alta posição na opinião pública explicando ou comentando esta sexualidade feminina, os novos desempenhos familiares, o que está em curso na identidade sexual. A mente do século XX ficou efectivamente marcada pelo “levantamento” da mulher e de inúmeras atitudes de libertação sexual a que a ascensão do individualismo deu novo impulso. Só esta luz também se pode compreender o associativismo de mulheres, o movimento homossexual e transgender, a diversidade de manifestações do comércio do sexo ou a violenta censura social sobre a pedofilia e a prostituição infantil.


“Ao Cair da Noite”, de Michael Cunningham (Gradiva, 2010), é um romance soberbo que se debruça sobre um tabu: a atracção entre dois cunhados. Escreve-se na contracapa: “Peter e Rebecca Harris, na casa dos 40 e a viver em Manhattan, aproximam-se do seu apogeu das suas carreiras em arte: ele, negociante, ela, editora numa boa revista da especialidade. Com um moderno e espaçoso apartamento, uma filha adulta a estudar em Boston e amigos inteligentes e animados, levam um invejável estilo de vida urbano contemporâneo e parecem ter todas as razões para serem felizes. Mas é então que o irmão de Rebecca surge em cena. Extremamente parecido com ela, mas muito mais novo, Ethan resolve visitá-los. Na sua presença, Peter começa a pôr em causa os artistas, o trabalho destes, a sua carreira – todo o mundo que construíra com tanto cuidado”.

É um livro intenso e devastador, caldeado pelo onírico, o apuro estético, a construção de personagens que palpitam na hesitação da identidade. Peter e Rebecca são registados, do princípio ao fim, como aquele casal que tem os problemas de toda a gente: a conciliação entre a conjugalidade e a realização profissional; os escrúpulos quanto ao modo como educaram a filha, a banalização nos actos íntimos do quotidiano. Conversam como qualquer casal, é uma comunicação que não levanta problemas entre o que pensam e como actuam. Michael Cunningham, hoje um autor consagrado e adaptado ao cinema, arrebata pela beleza como constrói esses diálogos entremeados de longos parágrafos sobre estados de espíritos ou olhares interiores, seja em torno do sexo seja sobre as preocupações à volta das suas carreiras. Ele é em galerista de média dimensão que representa artistas plásticos disputados; ela está numa encruzilhada, a publicação que orienta está a ser procurada por vários compradores. E de repente chega Ethan, conhecido na família como Mizzy, um jovem problemático. Em flashback, o autor descreve a genealogia das famílias e o seu relacionamento, é assim que Mizzy ganha contornos como ovelha tresmalhada, a preocupação de três irmãs.

A dimensão cultural é avassalada pela vida da galeria, as afinidades de Peter e o seu trato comercial com os artistas. É uma narrativa tão cativante, absorvente e quase física, entramos na trama e vivemos o dia-a-dia deste herói vacilante. Ficamos igualmente a saber que houve problemas entre Peter e o seu irmão Matthew, que era homossexual e que já faleceu. Como uma larva que cresce imperceptivelmente, a presença de Mizzy inquieta e agita Peter. É neste contexto que decorre um dos episódios mais portentosos da obra, quando Peter passeia à noite em Nova Iorque e conversa ao telefone com Bea, a sua filha, é um diálogo intenso, somos forçados a vibrar com o seu sentimento de culpa.

A atracção entre os dois homens avança para o clímax, Mizzy confessa a sua paixão por Peter, este devaneia, parece tentado a correr por essa pista perigosa, fatal sem retorno. Mizzy faz chantagem, revela perversidade delinquência. O que até agora parece um drama morno, de um insólito construído de heróis de pacotilha, ganha gigantismo no frente a frente entre Peter e Rebecca. Ele está possuído pelo sentimento de culpa, por não ter transgredido com Mizzy, pensa que Rebecca o irá repudiar por tal atitude. Não, Rebecca está desfeita porque o irmão partiu, é um toxicodependente sem remissão. Está desfeita porque o irmão disse que a adorava e o que o inibira no seu crescimento. Num diálogo patético, Rebecca não esconde a sua infelicidade e põe abertamente em causa se o casal não está à deriva. Sim, o casal está completamente nu, com o íntimo esventrado, como escreve Cunningham: “Qualquer coisa se ergue dentro de Peter, mais como uma planta a ser arrancada por uma mão invisível do que uma levitação da alma.

Ele sente raízes semelhantes a pêlos a extraírem-se da sua pele. Está a ser arrancado de si mesmo, a perder a casca do eu, daquele homem triste e faminto, da figura de acção com os olhos mal pintados e o fato de poliéster feito às três pancadas. Mas se ele tem sido uma figura ridícula, também tem sido um acólito, um amante do amor, e as suas pequenas cabriolas terrenas destinaram-se a apaziguar uma divindade, por muito disparatada e inadequada que fosse a sua oferenda”. Face a face, o casal toma conta do caminho que se percorreram até ali. Se falharam, só lhes resta tentar de novo. Talvez não seja demasiado tarde. Antes de começarem essa tentativa, Peter conta-lhe tudo o que aconteceu.

Esta é a relação tabu que Michael Cunningham pretende desvelar, uma atracção meteórica que podia ter levado um casal ao abismo. Eles têm cerca de 40 anos, estão em estado de dúvida, o álcool da verdade vai começar a agir. “Ao Cair da Noite” é uma história de sobressalto que só se pode entender à luz das transformações da sexualidade que nós teimamos em fingir que é outro lado do que deve ser a normalidade. Uma preciosidade literária em que o erotismo e a estética falam sobre o estado amoroso do nosso tempo.

Beja Santos
Jan.2011

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