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António Campos
Erving Goffman é um nome cimeiro da sociologia do
século XX, à escala mundial. As suas investigações foram da maior importância
em termos da análise de representação do Eu, das interacções sociais, dos
aspectos gestuais bem como das actividades que o indivíduo desempenha junto de
instituições. Contestatário, pôs em causa psiquiatria e o tratamento das
doenças mentais, denunciando a alienação e a violência dos tratamentos médicos.
Foi certamente o sociólogo mais influente dos anos 60 e 70 na América do Norte,
soube entrelaçar a sociologia com a antropologia cultural e daí a importância
indirecta que os seus livros tiveram nos estudos do comportamento do
consumidor: as variáveis ambientais, o poder dos grupos, os factores de
situação, enfim, análises indispensáveis para entender a decisão de compra, o
peso das mitologias de consumo, a transmutação dos valores, as reticências ou
abertura do indivíduo às mudanças sociais.
“Comportamento em Lugares Públicos” é o
título da sua obra mais marcante, depois de “A Apresentação do Eu na Vida de
Todos os Dias”, (Relógio d’Água, 1993), data dos anos 60, é um verdadeiro
clássico, por isso mesmo se saúda a sua tradução para língua portuguesa
(“Comportamento em Lugares Públicos”, por Erving Goffman, Editora Vozes, 2010). É desnecessário sublinhar a importância dos lugares públicos na vida do
indivíduo e da comunidade, são o somatório das ruas, parques, restaurantes,
bares, discotecas, cinemas, teatros, auditórios, estádios de futebol, lojas de
diferentes tamanhos e feitios, é aqui que nos cruzamos em actividades de
trabalho ou lazer. Goffman não disseca o comportamento colectivo mas sim as
pautas, os tiques, os gestos que são próprios do trafego humano. Escolhe espaços
públicos que tanto podem ser praças como a comunidade de ilhéus ou instituições
de doentes mentais. Adoptamos comportamentos adequados a uma certa realidade e,
no essencial, não os queremos transgredir: uma formatura militar é o que é, tal
como uma participação num funeral, um pedido de informação para encontrar uma
rua, adoptamos posturas, serviços de mensagens linguísticas de códigos que
provocam interacção (a não ser nos casos em queremos exibir o conflito e damos
sinais de transgressão).
Sabemos o que é uma distância física, se beijamos,
abraçamos ou cumprimentamos com aperto de mão. Somos educados a participar
correctamente nas ocasiões sociais, mostrando que estamos compungidos, alegres,
sérios; gargalhamos, não disfarçamos o prazer quando encontramos pessoas que
nos são estimáveis, não fazemos alarido nas bibliotecas, respeitamos as
convenções, o cortejo dos casamentos, deixamos passar o carro dos bombeiros ou
a ambulância. O nosso corpo actua, exprime, submete-se a tais convenções, com
disciplina ou com espontaneidade. O corpo é um mapa com vários idiomas, todo
ele comunica, seja pela nossa indumentária, seja pela linguagem corporal, pela
tensão ou descontracção, o nosso corpo revela como nos situamos bem, sentimos
constrangimento, nos sentimos ausentes ou a mais. Cuidamos da aparência ao
espelho antes de entrarmos num lugar público, graduamos os nossos cumprimentos
em ambiente masculino ou feminino. E quando hesitamos quanto às regras a
adoptar nesse lugar, podemos até marcar uma distância silenciosa, observamos o
comportamento dos outros e então adoptamos a nossa própria atitude.
Goffman privilegia os comportamentos de
atenção e desatenção, o face-a-face, o comunicar com o olhar, mas também as
situações sociais em que os intervenientes precisam de se socorrer de abertura,
comportamentos evasivos ou até controlados. No fundo, o que o sociólogo
pretende é centrar-se sobre a ordem pública que trata da conduta dos indivíduos
em presença de outros, tanto pode ser a relação em círculo social com conversa,
um indivíduo está condicionado por regras mais ou menos pré-estabelecidas e é
neste envolvimento que damos sinais da nossa realidade e nos constituímos como
factores de situação. Em concreto, este tipo de contributos de Goffman levam a que percepção do indivíduo
na sua relação com as coisas e as decisões de compra? É graças à sociologia e à antropologia que se sabe
hoje que o lugar do consumo é a vida quotidiana, é nela que o indivíduo
organiza o trabalho, o lazer, a família, as relações sociais, é neste espaço
que se pode decifrar o comportamento do consumidor entre o privado e o público,
entre o estatuto e a norma social, entre a convenção e a mudança. Outros na
Europa desenvolveram outras perspectivas sobre o quotidiano. Basta citar Jean
Baudrillard, Henri Lefebvre ou Roland Barthes. Porque o quotidiano é a
permanente impregnação pelo e para o consumo. Neste quotidiano a retórica
publicitária insinua o acto de consumir; o quotidiano é o lugar do desejo mas
também o lugar em que o desejo morre na satisfação.
O nosso modo de existência colectiva ordena-se em
função de um certo número de grandes instituições, que tanto podem ser as do
ensino como as culturais. A sociedade de consumo onde vivemos foi uma laboriosa
transferência da sociedade rural para o viver em sociedade urbana, do ambiente
industrial para o dos serviços. Esta sociedade consagra-se também pelos lugares
públicos que são marcados por uma complexidade e automatismos onde ordenamos a
nossa comunicação e onde a nossa imagem é tão importante como o perfume ou a
roupa que vestimos, a nossa autonomia é ditada pela forma como a respeitamos ou
repudiamos os códigos estatutários.
É nessa perspectiva que os estudos de Erving Goffman
ainda mantêm actualidade, remetendo-nos para estudos multidisciplinares onde a
psicologia económica, a antropologia social e cultural e a sociologia do
consumo são, entre outros, vectores que contribuem para o funcionamento do
mercado, do fabrico ao consumo. Nesta perspectiva de estudo, “Comportamento em
Lugares Públicos” é uma referência incontornável.
Beja Santos
Jan.2011
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