segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A DESCONTINUIDADE ENTRE A ESCRITA E A ORALIDADE NA APRENDIZAGEM (I)



 
Raúl Iturra

1. O OBJECTO DO PROCESSO EDUCATIVO

a) O Problema

Dizia já Durkheim (1922) que educar envolvia uma geração de adultos que sabe, outra de jovens que aprende e um processo entre eles. É este processo que é problemático: os conteúdos e as formas em que acontece definem-se conforme conjunturas que dão os limites do que se ensina e como se ensina. As variadas formas de ensinar que acontecem de cultura para cultura., bem corno dentro de uma sociedade em épocas históricas diferentes, são urna prova da proposta anterior. Mas, talvez, o que é variável no processo educativo é o seu próprio objecto e o entendimento dele por parte de geração de adultos e da geração de jovens. Uma sociedade jamais é homogénea, embora o processo educativo tenha por objectivo homogeneizar em algumas delas; as sociedades, pode talvez dizer-se, pensam que numa altura da vida dos seus jovens podem pô-los todos no mesmo nível do saber, enquanto noutras especializam-nos segundo as funções que definem o sistema classificatório das pessoas. Ao mesmo tempo pode dizer-se que, se este fenómeno classificatório existe, há também conhecimentos diversificados que coexistem com ele nas sociedades hierárquicas, enquanto que as que conservam a sua memória histórica por meio de anotar pela escrita a sua experiência, acabam por ter épocas diversas cuja coexistência permite que as suas instituições ensinem conteúdos diversos. Á frase de Durkheim talvez se possa contrapor a conversa que tinha eu e um dos meus colaboradores com uma rapariga reputadamente má para a aprendizagem escolar, numa aldeia que estudo em Portugal. Fernanda – perguntámos – se a 5 retirarmos 3 quanto fica? A questão foi colocada em português de criança e local, pelo meu colaborador, mas mesmo assim não foi entendida.
Perguntei, em consequência “quantas enxadas tens em casa? Respondeu-me 7: a do pai já falecido, a da mãe, a dos dois irmãos e a dela, mais duas que o irmão tinha feito como brinquedos. Perguntei quantas enxadas ficavam se tirasse a do pai e a da mãe e disse-me rapidamente que 5: a do Manuel a da Rosa Branca, a dela e as duas de brinquedo. É como quando Jack Goody perguntava ao rapaz Lo Dagaba no Ghana: ‘Sabes contar?’ “Sei”; ‘Então conta’; ‘Beni, mas o quê’? Porque disso dependia a ordem que ia usar. O conjunto destes três factos, se considerarmos a frase de Durkheim como uma informação do que na sua sociedade se passa, permitem dizer que o objecto de educar é incorporar o indivíduo num saber pré-existente mas que, dadas as classificações das pessoas e a acumulação de experiência sistematizada, definem o objecto da aprendizagem como um processo em que os jovens são incorporados em saberes que os adultos decidem consoante a sua particular maneira de entender qual será a forma da continuação social do seu rebento. A maneira de entender está definida à partida pela prática das técnicas que a sociedade usa no seu processo de ensino. O problemático é conhecer os elementos deste processo entre gerações.

b) Iniciação ao saber estabelecido

É o que se entende por processo educativo. O problema fica na definição do que é o saber estabelecido porque ele é variável. No caso das culturas de sociedades onde a memória é guardada na lembrança das pessoas, nas relações entre elas, nas suas histórias e nos seus factos, a variabilidade do estabelecido acaba por ser menor já que a conservação do saber depende da exactidão com que se entende e reproduz o saber encarnado nas pessoas que o transportam: quanto melhor se decorar, mais perto da verdade das funções sociais de coisas e objectos se fica. É o que tem preocupado Raymond Firth (1929), Meyer Fortes (1970), Jack Goody (1968) e Katherine Firth (1968) na vida tribal. Mas, o mesmo acontece nas formas rurais e nas clânicas, estas últimas muito bem estudadas por Maurice Godelier (1982). Talvez seja necessário detalhar: o que se ensina é a compreensão do movimento, natureza e função das coisas e as formas destas se relacionarem com as pessoas. A escola Maori, que Firth refere, ensina que estas categorias de pessoas podem manipular e como por meio de aprender ouvindo as genealogias da tribo e os mitos que guardam a história, se definem qual de todos os grupos tem a obrigação e o direito de cultivar; é o lugar onde se ensinam as fórmulas com que se age sobre as coisas e as pessoas, acompanhada da prática de andar junto com os adultos do grupo repetindo o que eles fazem conforme o destino traçado previamente ao nascimento da criança que se educa. É na “Casa de Aprender” que os Maori entendem o conceito de ‘ser forte’; por exemplo, já que a fórmula diz “sejas forte para poderes agarrar a arma que bate (a outro em caso de conflito), o mais adiantado no confronto, o primeiro a deitar abaixo o inimigo… “, etc., a passagem por cada um dos conceitos coloca a ideia que é depois praticada na iniciação e cuidadosamente executada, segundo a experiência, no confronto real, onde o treino do membro individual do pelotão dará a capacidade que, avaliada e aferida, decide o lugar que ocupa na luta. Ou na pesca. Ou no jogo. Ou na colheita. Ou no bosque ou no mar. Da mesma forma que o acompanhamento dos pais a lugares públicos ensina a etiqueta com que se deve comportar, a compostura que deve guardar, as palavras que estão ou não permitidas dizer. O saber estabelecido corresponde ao entendimento da manipulação dos recursos com que um grupo é capaz de se reproduzir. Assim exprimido o problema fica em saber qual de todos os saberes existentes será entregue a quem e compreendido por quem: O entendimento do manejo dos recursos reprodutivos está associado à condição da pessoa que virá a ser treinada na aprendizagem -específica e os elementos para ensinar serão outorgados ou não conforme a função a que o indivíduo é destinado. É como o entendimento das possibilidades da magia TAPU reservada aos chefes, ou o das funções do dinheiro que no caso acidental fica com quem pratica o trabalho individual e conduz o mercado. O problema fica, em consequência, com a possibilidade de ter acesso ao saber que reproduz entrega a compreensão do factor central do processo. A iniciação é, em consequência, heterogénea e desigual no conjunto das sociedades, incluindo a ocidental.(…)

(continua)
(do Aventar)

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