Raúl Iturra
1. O OBJECTO DO PROCESSO EDUCATIVO
a) O Problema
Dizia já Durkheim (1922) que educar
envolvia uma geração de adultos que sabe, outra de jovens que aprende e um
processo entre eles. É este processo que é problemático: os conteúdos e as
formas em que acontece definem-se conforme conjunturas que dão os limites do
que se ensina e como se ensina. As variadas formas de ensinar que acontecem de
cultura para cultura., bem corno dentro de uma sociedade em épocas históricas
diferentes, são urna prova da proposta anterior. Mas, talvez, o que é variável
no processo educativo é o seu próprio objecto e o entendimento dele por parte
de geração de adultos e da geração de jovens. Uma sociedade jamais é homogénea,
embora o processo educativo tenha por objectivo homogeneizar em algumas delas;
as sociedades, pode talvez dizer-se, pensam que numa altura da vida dos seus
jovens podem pô-los todos no mesmo nível do saber, enquanto noutras
especializam-nos segundo as funções que definem o sistema classificatório das
pessoas. Ao mesmo tempo pode dizer-se que, se este
fenómeno classificatório existe, há também conhecimentos diversificados que
coexistem com ele nas sociedades hierárquicas, enquanto que as que conservam a
sua memória histórica por meio de anotar pela escrita a sua experiência, acabam
por ter épocas diversas cuja coexistência permite que as suas instituições
ensinem conteúdos diversos. Á frase de Durkheim talvez se possa contrapor a
conversa que tinha eu e um dos meus colaboradores com uma rapariga
reputadamente má para a aprendizagem escolar, numa aldeia que estudo em
Portugal. Fernanda – perguntámos – se a 5 retirarmos 3 quanto fica? A questão
foi colocada em português de criança e local, pelo meu colaborador, mas mesmo
assim não foi entendida.
Perguntei, em consequência “quantas
enxadas tens em casa? Respondeu-me 7: a do pai já falecido, a da mãe, a dos
dois irmãos e a dela, mais duas que o irmão tinha feito como brinquedos.
Perguntei quantas enxadas ficavam se tirasse a do pai e a da mãe e disse-me
rapidamente que 5: a do Manuel a da Rosa Branca, a dela e as duas de brinquedo.
É como quando Jack Goody perguntava ao rapaz Lo Dagaba no Ghana: ‘Sabes
contar?’ “Sei”; ‘Então conta’; ‘Beni, mas o quê’? Porque disso dependia a ordem
que ia usar. O conjunto destes três factos, se considerarmos a frase de
Durkheim como uma informação do que na sua sociedade se passa, permitem dizer
que o objecto de educar é incorporar o indivíduo num saber pré-existente mas
que, dadas as classificações das pessoas e a acumulação de experiência sistematizada,
definem o objecto da aprendizagem como um processo em que os jovens são
incorporados em saberes que os adultos decidem consoante a sua particular
maneira de entender qual será a forma da continuação social do seu rebento. A
maneira de entender está definida à partida pela prática das técnicas que a
sociedade usa no seu processo de ensino. O problemático é conhecer os elementos
deste processo entre gerações.
b) Iniciação ao saber
estabelecido
É o que se entende por processo educativo.
O problema fica na definição do que é o saber estabelecido porque ele é
variável. No caso das culturas de sociedades onde a memória é guardada na
lembrança das pessoas, nas relações entre elas, nas suas histórias e nos seus
factos, a variabilidade do estabelecido acaba por ser menor já que a
conservação do saber depende da exactidão com que se entende e reproduz o saber
encarnado nas pessoas que o transportam: quanto melhor se decorar, mais perto
da verdade das funções sociais de coisas e objectos se fica. É o que tem
preocupado Raymond Firth (1929), Meyer Fortes (1970), Jack Goody (1968) e
Katherine Firth (1968) na vida tribal. Mas, o mesmo acontece nas formas rurais
e nas clânicas, estas últimas muito bem estudadas por Maurice Godelier (1982).
Talvez seja necessário detalhar: o que se ensina é a compreensão do movimento,
natureza e função das coisas e as formas destas se relacionarem com as pessoas.
A escola Maori, que Firth refere, ensina que estas categorias de pessoas podem
manipular e como por meio de aprender ouvindo as genealogias da tribo e os
mitos que guardam a história, se definem qual de todos os grupos tem a
obrigação e o direito de cultivar; é o lugar onde se ensinam as fórmulas com
que se age sobre as coisas e as pessoas, acompanhada da prática de andar junto
com os adultos do grupo repetindo o que eles fazem conforme o destino traçado
previamente ao nascimento da criança que se educa. É na “Casa de Aprender” que
os Maori entendem o conceito de ‘ser forte’; por exemplo, já que a fórmula diz
“sejas forte para poderes agarrar a arma que bate (a outro em caso de
conflito), o mais adiantado no confronto, o primeiro a deitar abaixo o inimigo…
“, etc., a passagem por cada um dos conceitos coloca a ideia que é depois
praticada na iniciação e cuidadosamente executada, segundo a experiência, no
confronto real, onde o treino do membro individual do pelotão dará a capacidade
que, avaliada e aferida, decide o lugar que ocupa na luta. Ou na pesca. Ou no
jogo. Ou na colheita. Ou no bosque ou no mar. Da mesma forma que o
acompanhamento dos pais a lugares públicos ensina a etiqueta com que se deve
comportar, a compostura que deve guardar, as palavras que estão ou não
permitidas dizer. O saber estabelecido corresponde ao entendimento da
manipulação dos recursos com que um grupo é capaz de se reproduzir. Assim
exprimido o problema fica em saber qual de todos os saberes existentes será
entregue a quem e compreendido por quem: O entendimento do manejo dos recursos
reprodutivos está associado à condição da pessoa que virá a ser treinada na
aprendizagem -específica e os elementos para ensinar serão outorgados ou não
conforme a função a que o indivíduo é destinado. É como o entendimento das
possibilidades da magia TAPU reservada aos chefes, ou o das funções do dinheiro
que no caso acidental fica com quem pratica o trabalho individual e conduz o
mercado. O problema fica, em consequência, com a possibilidade de ter acesso ao
saber que reproduz entrega a compreensão do factor central do processo. A
iniciação é, em consequência, heterogénea e desigual no conjunto das
sociedades, incluindo a ocidental.(…)
(continua)
(do Aventar)
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