domingo, 3 de fevereiro de 2013

Linguagem, Poder e Relações Internacionais(II)


Nildo Viana

Os colonizadores não conhecem o idioma do colonizado e por isso impõem o seu aos interlocutores locais. A administração local utiliza o idioma do colonizador, bem como as instituições implantadas (tribunais, escolas, etc.). A possibilidade de acesso a tais instituições também se faz via idioma dominante. Segundo Calvet, “no plano lingüístico, o colonialismo institui pois um campo de exclusão de duplo gatilho: exclusão duma língua (a língua dominada) das esferas do poder, exclusão dos falantes desta língua (dos que não aprenderam a língua dominante) dessas mesmas esferas” (2004, p. 04). Os colonizadores promovem um processo de seleção lingüística através de decretos, ações políticas, sistema escolar. Este é o primeiro estágio do que Calvet denomina glotofagia. No entanto, este processo de destruição de línguas (idiomas) acompanha um fenômeno mais amplo que é o etnocídio, isto é, a destruição de toda uma etnia, tal como alguns antropólogos denominaram (Auzias, 1978). Assim, consideramos que o etnocídio é um conceito mais amplo, que engloba a “glotofagia” e permite compreender que este processo de destruição de línguas não ocorre apenas na esfera lingüística mas em todas as esferas, pois o idioma nativo está ligado às relações sociais (tribais ou quaisquer outras) e uma vez estas relações desaparecendo ou sendo paulatinamente englobadas por outras, acabam tendo dificuldade em servir de meio de comunicação e por isso a resistência lingüística é uma empreitada com poucas chances de sucesso.

Assim, o primeiro estágio da glotofagia se caracteriza pelo fato da classe dominante local, aliada e subordinada à classe dominante do país colonizador, passa a utilizar o idioma do colonizador juntamente com o nativo, enquanto que a população em geral continua falando apenas o idioma nativo. Há, no primeiro caso, um bilingüismo e, no segundo, um monolingüismo. No segundo estágio há um avanço da glotofagia, no qual a população urbana acaba sendo englobada pelo bilingüismo, abandonando o monolingüismo do idioma nativo, restando apenas a população rural como praticante deste. A classe dominante local abandona o idioma nativo (indo do bilingüismo ao monolingüismo, adotando exclusivamente o idioma dominante) e a população urbana passa do monolingüismo nativo para o bilingüismo (englobando o idioma dominante) e a população rural continua no monolingüismo (restrito ao idioma nativo). Isto é produto do avanço do capitalismo que, com sua expansão e instauração de relações de produção capitalistas nas cidades, constrange a população urbana (determinadas classes sociais, além da dominante e as suas classes auxiliares, incluindo o proletariado nascente, etc.) a adquirir o idioma dominante .

A próxima fronteira a ser rompida pela expansão capitalista é o campo, o último reduto do monolingüismo nativo. A dinâmica capitalista não demora muito a romper esta fronteira, pois a subordinação das relações de produção não-capitalistas (camponesas) ao capitalismo, bem como implantação de relações de produção capitalistas, provoca a morte final do monolingüismo e a efetivação da glotofagia. As relações de produção capitalistas invadem o campo ou o subordinam, fazem da população rural dependente e subordinada à cidade, onde se encontra as relações de produção capitalistas, as indústrias, o centro administrativo, os meios oligopolistas de comunicação, as escolas. Como diz Calvet, o idioma dominante está ligado às formas mais “modernas” de produção enquanto que o idioma nativo está mais ligado às formas tradicionais. Neste último estágio, o idioma nativo é, segundo Calvet, definitivamente digerido pelo idioma dominante. Assim, Calvet expõe resumidamente o processo de glotofagia: “a língua dominante impõe-se segundo um esquema que passa pelas classes dirigentes, posteriormente pela população das cidades e, finalmente, pelo campo, e este processo apresenta-se acompanhado de bilingüismos sucessivos, ali onde a língua dominada resiste. Porém, a desaparição de uma língua (a glotofagia triunfante), ou o seu contrário, dependem de numerosos fatores não lingüísticos, em particular das possibilidades de resistência do povo que fala esta língua” (2004, p. 09).

O bilingüismo vai se desenvolvendo mas não harmonicamente, pois ele é, no caso dos países colonizados, marcado pela diglossia. O bilingüismo era considerado pelos lingüistas um fenômeno individual (um indivíduo que fala duas línguas) mas quando Ferguson elabora o conceito de diglossia ela ganha um caráter social. A diglossia ocorre quando duas formas lingüísticas (dois idiomas) coexistem numa mesma comunidade, caracterizando uma variedade alta e uma variedade baixa, sendo que a primeira manifesta a forma reproduzida nas instituições administrativas, escolares, intelectuais e a segunda na vida cotidiana (cf. Calvet, 2002; Martinet, 1975). Assim, o bilingüismo, neste caso, possui uma repartição social de usos e revela o predomínio idiomático do idioma dominante. Este é o primeiro passo para a implantação de um novo monolingüismo, agora fundado no idioma dominante e não mais no idioma nativo. Assim, o processo evolutivo da glotofagia ocorre da seguinte forma: monolingüismo do idioma nativo ? bilingüismo ? diglossia ? monolingüismo do idioma colonizador. O bilingüismo assume uma forte importância, nascendo na classe dominante local e se espalhando pelas classes exploradas e mudando para uma forma fundada na diglossia.

Estas relações são típicas das situações na qual existem os dominadores e os dominados e é por isso que Calvet cita casos de sociedades pré-capitalistas (o Império Romano e a expansão do Latim, a relação da Inglaterra e País de Gales, por exemplo) mas a situação é diferente com a emergência do capitalismo. Em primeiro lugar, as relações são mais complexas e isto pode ser exemplificado pela não existência de apenas um centro lingüístico e sim um centro hegemônico mundial com diversos concorrentes. Os países colonizadores nomeiam de forma pejorativa os colonizados (Calvet, 2004; Carboni e Maestri, 2003), devido às relações de poder instauradas, mas não o fazem com os países que não são seus subordinados. Calvet cita o exemplo da língua francesa que nomeia de forma pejorativa os países colonizados mas não os outros países colonizadores, e por isso as palavras que expressam estes países não são muito distantes dos termos originais: russe (ruski); anglais (english), italien (italiano). Espagnol (español). Em segundo lugar, este processo é irreversível devido a expansão capitalista e suas formas de realização: a glotofagia é um processo que acompanha o desenvolvimento capitalista e este possui um caráter universalista e expansionista realizado a partir dos Estados-Nações que se industrializaram pioneiramente, o que significa que o processo de colonização produziu um conjunto de idiomas que se tornaram mundialmente dominantes e se realizou – e continua realizando – a glotofagia de diversos idiomas. Isto vai gerar uma disputa mundial pela hegemonia lingüística a nível mundial entre os países imperialistas, o que será discutido mais adiante.

Este processo de mutação idiomática se relaciona com o processo de expansão capitalista e as mudanças nos regimes de acumulação. O colonialismo marca a primeira fase da glotofagia, no qual a administração colonial encontra aliados nativos que se tornam os reprodutores do idioma dominante. A passagem do colonialismo para o neocolonialismo expressa uma alteração nas relações entre colonizadores e colonizados, pois a limitação e posteriormente o fim da escravidão e entrada da Inglaterra na disputa colonial marca o processo de formação de mercado consumidor e força de trabalho no continente africano e outras regiões (incluindo o Brasil), o que amplia o processo de glotofagia, reforçando a população urbana contra a rural. A exportação de mercadorias assume papel fundamental neste período e isto influi nas relações internas nas colônias, que precisam fomentar seu mercado consumidor, o que significa uma expansão da urbanização e fim da escravidão no novo mundo. Com o imperialismo financeiro temos os investimentos massivos na infra-estrutura e expansão das relações de produção capitalistas e sua expansão nos países que já haviam iniciado anteriormente o seu processo de industrialização. Isso gera o capitalismo subordinado em alguns países, embora haja variações de acordo com cada país e também não significa que os modos de produção não-capitalistas tenham deixado de existir mas sim que se tornam subjugados às relações de produção capitalistas. A fase seguinte, do imperialismo oligopolista, já significa uma ampliação do capitalismo subordinado, invadindo as demais esferas da vida social e promovendo a abolição de relações de produção não-capitalistas. A produção no campo passa a ser dominada pela produção urbana, capitalista, instaurando o bilingüismo, em muitos casos fundado na diglossia. Este processo é mais rápido em alguns países, mais lento em outros, dependendo do conjunto das relações sociais concretas, mas expressando uma tendência geral e ligada ao processo de desenvolvimento capitalista. As línguas nativas que ainda resistem enfrentam hoje não somente uma intensificação da ação glotofágica expressa nas novas tecnologias de comunicação e na expansão da hegemonia norte-americana e, secundariamente, de outros países imperialistas.

Este processo, no entanto, ocorre de forma diferenciada em países diferentes. Além dos processos de resistência a glotofagia, que, ligados a diversas determinações (incluindo a religião), os países que tiveram um etnocídio que exterminou a maior parte da população nativa tiveram uma glotofagia mais rápida. No caso do Brasil, por exemplo, as línguas indígenas foram destruídas, em grande parte, com a destruição das sociedades indígenas. A população indígena acabou sendo isolada em algumas áreas e os contatos iam, paulatinamente, destruindo suas manifestações lingüísticas, bem como sua cultura como um todo. O idioma dominante no Brasil foi o português, pois a população indígena foi excluída do processo de organização do Estado-Nação neste país, embora algumas influências e manifestações lingüísticas tenham sobrevivido e incorporado ao “português brasileiro”, que engloba também as línguas africanas que vieram junto com a população negra escravizada. A glotofagia, no caso brasileiro, foi muito mais rápida e eficaz, bem como a instauração das relações de produção capitalistas no Brasil, em comparação com os países africanos. A resistência lingüística em muitos casos é frágil, em outros é simplesmente inexistente, em alguns é forte e consegue manter a língua nativa ou as suas manifestações diferenciadas, mas este último caso é mais raro e depende de uma série de determinações que dependem de cada caso concreto.[…]

(continua)


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