domingo, 24 de fevereiro de 2013

A DESCONTINUIDADE ENTRE A ESCRITA E A ORALIDADE NA APRENDIZAGEM(II)



 
 Raul Iturra

2. TÉCNICAS DO PROCESSO EDUCATIVO

a) O Problema

O não relacionamento entre as técnicas da oralidade e da escrita é o que acarreta uma descontinuidade no processo de aprendizagem, já que se referem a assuntos diferentes quanto à substituição na continuidade histórica de um grupo social. Isto porque cada uma destas técnicas é resultado de sistematizar o real de forma diversa. Não é a técnica de ler e escrever de uma parte, e memorizar por outra, o que cria em si a dificuldade. É o conteúdo do que elas transmitem e o treino a que cada uma submete a mente, o que origina a descontinuidade, quando ambas as técnicas coexistem. Talvez seja necessário exprimir que a descontinuidade está nos campos a que cada uma delas tem sido referida, no que diz respeito a saber e teoria; e a complexificação ou simplificação que cada uma delas comporta. À aprendizagem pela memória não escrita ficam sujeitas as relações que as pessoas actualmente praticam, enquanto que à memória escrita ficam adscritas as abstracções universais das mesmas, no que diz respeito à conduta social. É a mesma diferença que existe entre a legislação canónica ou positiva a respeito da formação da família e circulação dos bens, e a apreciação das possibilidades específicas que têm determinadas pessoas para ter filhos, entender o trabalho, amar, ser sujeito de paz, aceitar que o conflito existe mas é possível geri-lo, e outros exemplos, mas, com a passagem do tempo uma outra diferença de conteúdo se tem introduzido entre as duas técnicas de aprender: é verdade que a escrita despersonaliza e universaliza, mas o mito também; é verdade que a oralidade de debruça sobre as qualidades específicas das pessoas e particulariza os fenómenos, mas também a teoria geral da lembrança pela palavra que explica os textos divinos. Há, ou tem havido, uma relação entre o facto de escrita e oralidade circularem o saber por meio dos atributos da divindade, e a ideia do bem e do mal. O que tem acontecido, contudo, é o processo de aprender ter passado a ser um exercício da razão que se debruça sobre os fenómenos e as suas características, e os anota para voltar a eles, e esse processo tem passado a ser dominante e associado aos textos. Quando criação divina do mundo, palavra que sistematizava as suas características e texto que as lembrava coincidiam, o saber era letrado ou hierárquico. Quando se cria a figura de cidadão, o crer separa-se da razão, numa teoria da igualdade entre todos os seres humanos que, desde que tenham uma vontade livre, podem concorrer entre eles…

b) Escrita, valor e razão

A técnica de ler aprende-se em textos que formem o cidadão. A de escrever cuida de que o cidadão mantenha o exercício de abstrair as qualidades das coisas. Mas aquelas qualidades dão às coisas um valor transaccional medido em dinheiro e, eventualmente, acumulável em lucro. A medida do uso de todo o saber é a sua utilidade, e a sua utilidade mede-se pela sua capacidade de ser comprado e vendido, compra e venda que se rege por um preço que segue a sorte do salário, e o salário o da procura e oferta; os quais têm todos que ver com o tempo que um indivíduo gasta a produzir um bem. Já se sabe, para mais tempo na produção de bens socialmente aceites e procurados, maior salário, preço mais alto, menor venda. A lei do valor tem passado a ser um critério de medida das relações entre os homens que se substituem uns aos outros anonimamente. A lei do valor é um derivado de um desenvolvimento de uma teoria, a económica, que se debruça acerca das qualidades das coisas a que ficam as pessoas sujeitas e dependentes. O critério derivado é o da utilidade o qual define o valor do que se possa vir a teorizar, entender, explicar ou transmitir na aprendizagem.
Este critério de utilidade pede o desenvolvimento de um ser humano cujas habilidades para abstrair sejam treinadas, desenvolvidas, salientadas, especialmente na época em que, é dito, a maquinaria substitui a força. Já estava o campo preparado nessa distinção entre corpo e alma que a maior parte das culturas têm, como para que não fosse lógico chegar a querer aperfeiçoar a capacidade intelectual do cidadão. Isto reflecte-se no conteúdo do que se ensina na técnica de ler e escrever: os signos com que as ideias se argumentam têm uma ordem, a gramática, que é diferente da usada na linguagem quotidiana. Isto porque se tem descoberto que o argumento que explica é o formal, que se exprime por uma ordem convencional de sujeito, verbo, predicado e complemento, que permite a uniformização do discurso entre pessoas que têm uma mesma identidade, têm a mesma capacidade de racionalizar, o mesmo acesso aos bens, o mesmo instrumento contrato para fixar os termos úteis das suas relações. A razão precisa de uma igualdade entre iguais que a gramática torna possível, numa cultura onde as coisas são também rentabilizadas pela aritmética que prepara para desenvolver o valor marginal. A escrita resulta do ordenamento social imposto pela economia que é descontínua com a experiência histórica dos seres humanos que abstraem pela virtude individual.[…]

 (continua)
(do Aventar)

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