quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

As cores da violência

GassedImage by danny.hammontree via Flickr


António Campos

Naquela noite saíram como de costume. Um passeio por aí depois de jantar, Lisboa a estrear o Verão, as esplanadas, o sopro indolente do rio e uma bica algures. O dia seguinte é de Santo António, demoram-se na Avenida da Liberdade a ver passar as marchas. Passa das onze e trinta quando apanham o 19 na Alameda, de regresso a casa. Moscavide é longe, o autocarro quase vazio faz das sombras um deserto. Sempre a direito, poucas paragens. Na Rotunda do Relógio entra um grupo de rapazes, dez ou doze. Um em cada porta, os outros no corredor.

A medir o olhar, breves segundos. VÍtor levanta-se sem tempo de proteger o corpo, o som das pancadas antes da dor. Sara vem a seguir. Sobre eles um círculo de raiva, uma sede sem perdão. A partir de agora, cada pessoa no 19 tem uma cor. Ao volante, sem desvios, o condutor, branco, olha em frente no percurso habitual. Junto à janela, um miúdo de headphones, branco, faz-se mais pequeno. Três bancos atrás, um casal de sessenta anos, negro, baixa a cabeça. O grito vem da rapariga de vinte anos. «Parem com isso, eu também sou africana, não vêem que não faz sentido?» É branca. A vez dela vai fazer sangue. Depois é o rapaz dos headphones. Murros e pontapés até cansar, antes do fim. Sinal de parar, o condutor abre as portas. O grupo começa a sair. A lentidão é de ameaça: cá fora, seguram as portas e lançam pedras sobre os passageiros.

Fiel às regras, o funcionário da Carris não cede a desesperos. Por mais que lhe gritem, só carrega no acelerador quando as saídas são libertadas e o grupo se afasta. O resto da viagem faz silêncio. Vítor e Sara só saem em casa. Nada de hospitais, nada de polícia. «Para quê? Aos olhos da polícia somos marginais. Não me espantava que nos dissessem que o nosso aspecto é uma provocação.» Da rapariga que os quis ajudar e do outro rapaz nunca mais souberam. Ainda falaram às televisões, mas não havia sangue suficiente. «Não ligaram nenhuma. Uma das estações queria que fôssemos com eles aos bairros, à procura». De quê? De alguém que dissesse «Skin de merda»? De alguém que jurasse «Vais morrer»? De alguém que vingasse «Um de nós já morreu agora é a vossa vez»? Branco por branco, negro por negro? «Naquela noite não conseguimos dormir.

Ficámos sentados na sala, a tentar compreender. Era fácil tomarmo-nos racistas.» Era fácil não dizer, mas o Vítor e a Sara são brancos. Ele usa o cabelo rapado. «Não tenho nada a ver com os skins.» São professores. A maioria dos alunos são, como dizer? Negros. «Nunca houve problemas.» Agora é diferente? «Saímos cada vez menos, evitamos os transportes públicos, à noite pedimos aos amigos que nos tragam à porta de casa.» Têm amigos negros? «Sim. Claro.» Era fácil não dizer, mas o grupo do autocarro 9 era negro.


Helena Mascarenhas, in Marie Claire, adaptado


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