sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A "cumplicidade feminina" como comportamento de género

Woman to Woman album coverImage via Wikipedia


António Campos

Tinha pela primeira vez à minha frente o famoso ToPê, e, na realidade, não era mau. Mas, por qualquer razão, quando as nossas amigas nos falam longamente das suas paixões antes de chegarmos a conhecer o corpo que lhes diz respeito, a expectativa acumulada deixa-nos sempre um sabor a pouco ao confrontarmos horas infindas de liberdade fantasmáticas com o objecto que no início as despoletou. Ou, então, era eu que nessa noite não estava particularmente predisposta para apreciações detalhadas do género, porque o que é certo é que não descansei enquanto o rapaz não se levantou para ir à casa de banho. E só queria que ele se demorasse por lá imenso tempo, que nunca mais voltasse, que, de repente, ninguém estivesse apaixonado por ninguém porque, para variar, desta vez não me interessavam as emoções da Catarina. Precisava dela. Chovia desalmadamente na rua, e eu precisava dela só para mim. E ela sabia. Eu sabia que ela sabia. Tinha visto na minha cara quase tudo o que eu não lhe disse quando desceram os dois do comboio de mãos dadas, numa grande confusão de malas e com o cabaz de vime onde o cão estava a dormir, e nos agarrámos uma à outra na algazarra festiva do costume, até que eu me pendurei do pescoço do ToPê e o beijei calorosamente. Bem-vindo a bordo, pequenino.

- Este é o ToPê - dissera ela.
E pestanejou de uma forma suavemente intencional, mas já não estava a apresentar-me o amante ao fim de longos meses de confidências telefónicas. Estava a medir os sinais mínimos da minha perturbação com todos os sentidos em actividade, e a auscultar, em cada um dos meus gestos, a dimensão do desastre. A Catarina viu-me na plataforma e percebeu no primeiro olhar que afinal não era dela que se tratava, mas atravessado entre nós estava agora um homem de olhos azuis. E gabardine azul, e barba de três dias, o corpo do delito que supostamente nos reunira ali e não podia perceber como de repente era tão importante que qualquer imperativo prosaico o obrigasse a deixar-nos momentaneamente o campo livre. Quando, por fim, o vimos contornar-nos pela direita, incerto e etéreo, inclinámo-nos sobre a mesa numa sincronia perfeita e sorrimo-nos a mensagem cifrada de que o socorro mútuo estava a postos.

- Conta-me tudo - disse ela, e fez-me uma festa na mão.
- Não posso - respondi eu, e apertou-se-me a garganta porque era horrível não poder contar-lhe tudo - Não temos tempo. (...)
- Ai, Catarina - gemi eu de desgosto e solidão, enquanto lá fora o céu de Novembro se desfazia sem fim sobre a cidade e sobre os barcos e as gruas do cais.
- Dói-te muito? - perguntou ela.
- Dói-me tudo - disse eu.»


Clara Pinto Correia, Ponto Pé de Flor. Publicações Dom Quixote, 1994. 8ª edição


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