quarta-feira, 7 de março de 2012

Os tempos hipermodernos

Modern Times (Latin Quarter album)
Image via Wikipedia


António Campos



 “Os Tempos Hipermodernos” é uma obra de 2004, colige uma análise do pensamento do filósofo Gilles Lipovetsky, uma apreciação do próprio filósofo ao que ele entende ser uma sociedade hipermoderna, concluindo com uma entrevista ao percurso intelectual do autor da expressão “segunda modernidade” (“Os Tempos Hipermodernos”, por Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles, Edições 70, 2011). Vejamos os grandes conceitos e problemas enunciados neste trabalho, de grande interesse para avaliar a sociedade de consumo e comunicação em que vivemos, sem prejuízo de que nos últimos 7 anos operaram-se mudanças de grande peso que obrigatoriamente afectam as teses em torno da hipermodernidade.
Primeiro, a modernidade, com a filosofia das Luzes e o cientismo do século XIX, estabeleceu uma ruptura com a maneira de olhar o futuro que até então era a antevisão da felicidade e o fim dos sofrimentos. A modernidade apostou no cidadão, no voto democrático, no parlamentarismo, no pluralismo. Esta modernidade foi confrontada com a emancipação do indivíduo, quando nasceu o consumo de massas e o hedonismo, algo que ocorreu na segunda metade do século XX. O individualismo libertou-se de normas tradicionais, estabeleceu-se com base na sedução e no narcisismo no novo patamar que Lipovetsky designa por hiperconsumo e hipermodernidade que assim designa: “Um consumo que absorve e integra as partes cada vez maiores da vida social, que funciona cada vez menos segundo o modelo de confrontos simbólicos e que se ordena em função de fins e critérios individuais e segundo uma lógica emotiva e hedonista que faz com que cada um consuma primeiro por prazer mais do que para rivalizar com o outro”.

Segundo, estes indivíduos são mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, mais críticos e mais superficiais. Vivem inquietos e atemorizados, sentem-se detentores da felicidade privada recomendado por múltiplos altifalantes: os meios de comunicação social, a moda, a constelação das comunicações comerciais. E buscam a felicidade, como? Numa atmosfera de lógica consumista onde prevalecem: o princípio do livre serviço, o cálculo utilitarista, a superficialidade das relações, tudo dentro de uma lógica de reciclagem do passado. Mas cabe aqui uma advertência: o consumo não reina por todo o lado, os indivíduos não estão reduzidos ao papel de consumidores e o consumo não é em si próprio o factor determinante da homogeneização social. O fundamental a reter será que o indivíduo se sente mais dono e senhor da sua vida, os meios de comunicação social adaptam-se à lógica da moda, inscrevem-se no registo do espectacular e do superficial.

Terceiro, esta hipermodernidade sucedeu àquilo que se convencionou chamar o pós-moderno, no fundo uma reorganização do funcionamento social e cultural das sociedades democráticas avançadas. Foi uma época de perda de fé no futuro revolucionário, de desinteresse pelas paixões políticas e pelos militantismos. Foi uma época em que todos os estilos estavam na moda, assistiu-se à descompressão cool do social. Esta pós-modernidade estava a pôr termo a um período intenso dominado pelo primado ideológico-político. O que vem agora, nos tempos hipermodernos, diz Lipovetsky, está aquém da política, através das tecnologias, dos media, da economia, do urbanismo e do consumo. Já não se sonha com um futuro radioso, vivemos em permanente adaptação desprovida de horizonte de confiança e de grande visão histórica. Ele diz mesmo que a hipermodernidade multiplicou as temporalidades divergentes. Como é óbvio, nestas transições não se deita tudo por terra, há lições do passado, há conceitos que se reformulam. Não se perdeu o sentido do efémero, nem da renovação nem da sedução permanente; continuamos a viver com um sentimento de insegurança, a saúde continua a impor-se como uma obsessão de massas, continua-se a temer riscos e perigos, o terrorismo, as catástrofes, as epidemias. Há aspectos do hedonismo que estão a ser suplantados pela ideologia da saúde e da longevidade. O que nos desperta para o peso e a forma dos paradigmas actuais e da confiança que se pode depositar nesta hipermodernidade.

Quarto, estamos a antecipar-nos ao futuro, como bem ilustra a nova maneira de vermos a saúde. É verdade que nos continuamos a tratar mas nunca como hoje se viveu tão inquietado pela prevenção, pela vigilância sanitária, a medicalização da existência. Também vemos o tempo de outra maneira, ele está dependente das temporalidades heterogéneas (tempo livre, consumo, lazer, férias, saúde, educação, horários de trabalho flexíveis, reforma). O tempo é vivido como uma preocupação maior, o presente é a grande pressão que pesa sobre a vida das organizações e das pessoas. Em simultâneo com esta concepção, criou-se o hipermercado dos modos de vida, a civilização tornou-se um amplo espaço em que se quebram as sincronizações das actividades e em que há cada vez mais a construção personalizada do emprego do tempo. E por último, como diz expressamente Lipovetsky, “A cultura hipermoderna caracteriza-se pelo enfraquecimento do poder regulador das instituições colectivas e pela autonomização correlativa dos interventores sociais face às imposições de grupo, sejam elas da família, da religião, dos partidos políticos, das culturas de classe”. E é por isso nunca como hoje se procurou preservar a memória em tempo, parece que tudo é objecto de museu ou de celebração. Misturam-se as chamas do sagrado, conciliam-se valores religiosos, grupos e redes combinam as tradições espirituais do Oriente e do Ocidente, depois dos direitos humanos sentimo-nos atraídos pela tolerância religiosa neste hipermercado dos vectores espirituais.

Lipovetsky é prudente sobre esta nova era e as suas balizas. Limita-se a dizer: “A hipermodernidade democrática e mercantil não disse a sua última palavra: ela apenas está no início da sua aventura histórica”. Como nos convidasse a reflectir sobre o turbilhão de acontecimentos que se iniciou com a globalização e a sociedade de mercado, as novas pobrezas e novas exclusões, o crescimento dos medos, o aparato das recessões depois das falências de 2008, etc. A sua análise é subtil: o consumidor triunfante dos anos 50, anda hoje à deriva, sente-se fragmentado e desregulado. É verdade que se consome mais por si do que para ter o reconhecimento do outro. Procuram-se avidamente novas sensações; a existência pessoal exprime-se através das coisas, sempre a fugir do tédio, da repetição, sempre preocupados com o envelhecimento da vida íntima. Nestes tempos hipermodernos comprar é jogar, é comprar um pequeno renascimento no nosso quotidiano subjectivo.

Insista-se num aspecto: o mercado, o individuo e os avanços técnicos têm estado sujeitos a grandes embates nos últimos anos, as novas pobrezas e as novas exclusões mudaram de natureza e vivemos profundamente inquietos com uma recessão que não vê luz ao fundo do túnel. É certo e seguro que este conceito de tempos hipermodernos terá que ser corrigido por tudo quanto se está a passar, tal o impacto das suas relações com o emprego, o tempo e o consumo, entre outras perspectivas. Atenção ao próximo livro de Lipovetsky…

Beja Santos
Jan.2011

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