quarta-feira, 11 de abril de 2012

A origem da dominação (I)

Doll Domination
Doll Domination (Photo credit: Wikipedia)


António Campos



Como surgiu o poder? Esta é uma pergunta que já recebeu muitas respostas. Hoje, esta resposta possui uma versão bastante difundida, que é defendida por diversas pessoas, principalmente ligadas à teoria antropológica. Segundo esta abordagem, a dominação do sexo feminino precedeu a dominação de classe e por conseguinte é aí que reside a origem do poder. A versão marxista apresenta sua tese de que é com o surgimento das classes sociais que aparece o poder.

É daí que surgem as duas visões sobre a opressão da mulher: o marxismo–com raras exceções influenciadas pela antropologia –, defende a tese da existência do matriarcado, e as antropólogas “feministas” e os antropólogos em geral, com poucas exceções (sendo que na maioria destas há a influência do marxismo), defendem a tese da subordinação universal da mulher. São duas posições que se apresentam como duas teorias do surgimento do poder. Ambas, entretanto, apresentam problemas, como veremos a seguir. Mas elas deixam claro uma coisa e tal coisa será o ponto de partida do nosso estudo: a questão da origem da dominação da mulher é um elemento na história da humanidade que poderá contribuir com a resposta sobre a questão da origem do poder.

A tese do matriarcado teve como primeiros defensores as figuras de Bachofen e Morgam. Estes dois “precursores da antropologia”, como se costuma dizer, ao analisarem os mitos das sociedades antigas ou então as sociedades indígenas, observaram o considerável poder que as mulheres possuíam diante dos homens. Aperfeiçoando e se baseando no material recolhido por estes dois pesquisadores, Marx e principalmente Engels lançariam a idéia de que existiu um matriarcado antes do surgimento da sociedade de classes e que o aparecimento das classes sociais seria o fator que teria provocado a dominação masculina sobre a mulher. Alguns poucos antropólogos e outros cientistas sociais aceitam ainda hoje, se baseando em novos dados, esta tese.

Entretanto, a partir do surgimento da obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, e, posteriormente, de Claude Lévi-Strauss, Estruturas Elementares do Parentesco, tornou-se comum refutar a idéia de que tenha existido um matriarcado e a se defender a tese de que a subordinação da mulher é universal. Tal idéia ganhou penetração no movimento feminista graças a obra de Beauvoir e na antropologia graças ao livro de Lévi-Strauss. Antropólogos, antropólogas, antropólogas feministas, feministas culturalistas, passaram a fazer parte daqueles que postulam a existência da subordinação universal da mulher. As raras exceções se deviam a influência do marxismo.

Ocorre, porém, que desde a obra de Simone de Beauvoir existe uma ambigüidade não resolvida. Para esta representante do existencialismo, não se nasce mulher, mas torna-se mulher e sempre houve a subordinação da mulher, pois esta é uma “condição natural”. Entretanto, ela pergunta a si mesma sobre o início da subordinação da mulher:

mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, se tenha traduzido num conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início” (Beauvoir, 1978, p. 19).

Ora, se é universal, então não surgiu, sempre existiu. Neste sentido, a formulação é contraditória. O natural não teve começo, pois a naturalidade de algo vem do desenvolvimento espontâneo. É somente quando o ser humano interfere através da cultura é que se rompe com a natureza. Sendo assim, não há sentido em dizer que é natural e simultaneamente perguntar pelo começo. De onde vem esta ambigüidade?

Ela vem da ambigüidade comum daqueles que são oprimidos e buscam sua libertação, mas não conseguem fazê-lo de forma autónoma. Em outras palavras, devido a esta falta de autonomia os oprimidos utilizam as concepções, linguagem e ideologia dos dominantes para se efetivar uma crítica da dominação, mas tal crítica é limitada justamente pelo motivo de que estes oprimidos não conseguiram se libertar totalmente dos dominantes. Por isto, apenas podem postular uma libertação parcial, utilizando-se de uma concepção parcialmente liberada da ideologia dominante.

A tese da subordinação universal da mulher possui outros defensores nos dias de hoje. Este é o caso de antropólogas que buscam refutar Bachofen. É isto que tentou fazer a antropóloga Joan Bamberger. Segundo ela, Bachofen teria analisado os mitos das sociedades primitivas e uma análise dos mitos pode revelar que quando eles falam de um “governo feminino” é para justificar e demonstrar que tal governo é indesejável e que as mulheres perderam-no por que não sabiam utilizá-lo (Bamberger, 1978). Pois bem, tal tese seria até certo ponto aceitável se ela tivesse analisado os mesmos mitos que Bachofen.

Ocorre, porém, que ela analisou mitos do continente americano e, assim, sua refutação de Bachofen é apenas uma comparação entre dois temas de estudo diferentes. Sociedades e mitos diferentes. Uma análise desmistificadora deveria ter analisado o mesmo tema. Além disso, o fato de que os mitos descritos por Bamberger retratarem um período de “governo feminino” significa que elas tiveram o poder de fato ou então que podem conquistá-lo, pois, caso contrário, qual seria o motivo de se criar tais representações sobre o mal que é o governo feminino? Esta interpretação dos mitos retira o contexto social no qual eles foram produzidos e desconhece o seu caráter simbólico. Na verdade, no mito não se fala de “governo feminino” e o que ele retrata só pode ser compreendido levando-se em conta não só a relação mulheres-homens, mas também todas as demais relações sociais.

Além disso, não se entende como os homens, superiores naturais e universais, segundo este tipo de abordagem, poderiam perder tempo criando fabulosas estórias sobre o “desgoverno feminino”, se as pobres e universalmente subordinadas mulheres não tivessem nenhuma condição de implantar o seu domínio. Aliás, esta postura reflete bem a visão de vítima daqueles oprimidos que não possuem um projeto de libertação. Eternas vítimas da história, da natureza, do dominante.

Na verdade, não se pode provar a existência de uma subordinação universal da mulher. Isto se deve ao facto de que a própria noção de subordinação (tal como muitas outras noções correlatas ou não, tal como “governo”, hierarquia, etc.) apresenta dificuldades quando aplicada às sociedades primitivas ou indígenas. O que é a subordinação? O uso desta palavra, neste caso, tem um sentido claramente não-marxista. Subordinação, Sub-ordem, Hierarquia, Estratificação. Tais são as palavras que vêem para substituir a teoria marxista das classes sociais. A mulher subordinada significa que ela constitui uma sub-ordem. Assim, existem ordens a, b, c, d, e assim por diante, sendo que as primeiras possuem, no que diz respeito às sociedades, mais poder, prestigio, autoridade, ou seja, estão no cume da pirâmide da hierarquia social, da estratificação. Desta forma, se destrói a visão da totalidade e se isola relações (que passam a ser, na ideologia feminista mais recente, de “gêneros”...), criando mais uma ideologia, inversão da realidade.

Neste sentido, existia subordinação da mulher? Bom, seria muito difícil falar em ordens numa sociedade que os próprios antropólogos chamam de “holistas”. Além disso, todas as categorias utilizadas para retratar isto, seriam deslocadas em tais sociedades, pois poder, prestigio, hierarquia, estratificação, etc., são expressões ilusórias das relações sociais em nossa sociedade. Aliás, é o estruturalismo que utiliza a expressão subordinação no estudo das relações de parentesco nas sociedades simples. A concepção estruturalista reproduz uma posição que é hegemônica na concepção positivista: busca criar um modelo para encaixar a realidade. A matemática e a linguística, podem muito bem falar em subordinação, seja de números ou de orações. A ideologia das ordens vem para justificar a sociedade existente, pois diz que a divisão da sociedade em ordens (ao invés de classes e mesmo quando se utiliza esta expressão é no interior de uma concepção de hierarquia e estratificação) sempre existiu e por isso irá continuar existindo. Podemos dizer que existem, factualmente, ordens, mas na ideologia tais ordens são apresentadas como dados naturais (o que torna possível sua universalização) e a-históricos (logo, universais), pois se omite o seu processo de formação, reprodução, os seus fundamentos sócio-históricos. Assim, existe subordinação na sociedade capitalista, mas sua génese e reprodução é omitida e só resta os dados naturais, comprovados por fatos transformados em fetiches (…).
(continua)

Nildo Viana
Fev.2011

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