Doll Domination (Photo credit: Wikipedia) |
António Campos
Como surgiu o poder? Esta
é uma pergunta que já recebeu muitas respostas. Hoje, esta resposta possui uma
versão bastante difundida, que é defendida por diversas pessoas, principalmente
ligadas à teoria antropológica. Segundo esta abordagem, a dominação do sexo
feminino precedeu a dominação de classe e por conseguinte é aí que reside a
origem do poder. A versão marxista apresenta sua tese de que é com o surgimento
das classes sociais que aparece o poder.
É daí que surgem as
duas visões sobre a opressão da mulher: o marxismo–com raras exceções influenciadas pela
antropologia –, defende a tese da existência do matriarcado, e as antropólogas
“feministas” e os antropólogos em geral, com poucas exceções (sendo que na
maioria destas há a influência do marxismo), defendem a tese da subordinação
universal da mulher. São duas posições que se apresentam como duas teorias do
surgimento do poder. Ambas, entretanto, apresentam problemas, como veremos a
seguir. Mas elas deixam claro uma coisa e tal coisa será o ponto de partida do
nosso estudo: a questão da origem da dominação da mulher é um elemento na
história da humanidade que poderá contribuir com a resposta sobre a questão da
origem do poder.
A tese do matriarcado teve como
primeiros defensores as figuras de Bachofen e Morgam. Estes dois “precursores
da antropologia”, como se costuma dizer, ao analisarem os mitos das sociedades
antigas ou então as sociedades indígenas, observaram o considerável poder que
as mulheres possuíam diante dos homens. Aperfeiçoando e se baseando no material
recolhido por estes dois pesquisadores, Marx e principalmente Engels lançariam
a idéia de que existiu um matriarcado antes do surgimento da sociedade de
classes e que o aparecimento das classes sociais seria o fator que teria
provocado a dominação masculina sobre a mulher. Alguns poucos antropólogos e
outros cientistas sociais aceitam ainda hoje, se baseando em novos dados, esta
tese.
Entretanto, a partir do surgimento da
obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, e, posteriormente, de Claude
Lévi-Strauss, Estruturas Elementares do Parentesco, tornou-se comum
refutar a idéia de que tenha existido um matriarcado e a se defender a tese de
que a subordinação da mulher é universal. Tal idéia ganhou penetração no movimento
feminista graças a obra de Beauvoir e na antropologia graças ao livro de
Lévi-Strauss. Antropólogos, antropólogas, antropólogas feministas, feministas
culturalistas, passaram a fazer parte daqueles que postulam a existência da
subordinação universal da mulher. As raras exceções se deviam a influência do
marxismo.
Ocorre, porém, que desde a obra de
Simone de Beauvoir existe uma ambigüidade não resolvida. Para esta
representante do existencialismo, não se nasce mulher, mas torna-se mulher e
sempre houve a subordinação da mulher, pois esta é uma “condição natural”.
Entretanto, ela pergunta a si mesma sobre o início da subordinação da mulher:
“mas uma questão imediatamente se
apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos,
como toda dualidade, se tenha traduzido num conflito. Compreende-se que, se um
dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como
absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início” (Beauvoir,
1978, p. 19).
Ora, se é universal, então não surgiu,
sempre existiu. Neste sentido, a formulação é contraditória. O natural não teve
começo, pois a naturalidade de algo vem do desenvolvimento espontâneo. É
somente quando o ser humano interfere através da cultura é que se rompe com a
natureza. Sendo assim, não há sentido em dizer que é natural e simultaneamente
perguntar pelo começo. De onde vem esta ambigüidade?
Ela vem da ambigüidade comum daqueles
que são oprimidos e buscam sua libertação, mas não conseguem fazê-lo de forma
autónoma. Em outras palavras, devido a esta falta de autonomia os oprimidos
utilizam as concepções, linguagem e ideologia dos dominantes para se efetivar
uma crítica da dominação, mas tal crítica é limitada justamente pelo motivo de
que estes oprimidos não conseguiram se libertar totalmente dos dominantes. Por
isto, apenas podem postular uma libertação parcial, utilizando-se de uma
concepção parcialmente liberada da ideologia dominante.
A tese da subordinação universal da
mulher possui outros defensores nos dias de hoje. Este é o caso de antropólogas
que buscam refutar Bachofen. É isto que tentou fazer a antropóloga Joan
Bamberger. Segundo ela, Bachofen teria analisado os mitos das sociedades
primitivas e uma análise dos mitos pode revelar que quando eles falam de um
“governo feminino” é para justificar e demonstrar que tal governo é indesejável
e que as mulheres perderam-no por que não sabiam utilizá-lo (Bamberger, 1978).
Pois bem, tal tese seria até certo ponto aceitável se ela tivesse analisado os
mesmos mitos que Bachofen.
Ocorre, porém, que ela analisou mitos do
continente americano e, assim, sua refutação de Bachofen é apenas uma
comparação entre dois temas de estudo diferentes. Sociedades e mitos
diferentes. Uma análise desmistificadora deveria ter analisado o mesmo tema.
Além disso, o fato de que os mitos descritos por Bamberger retratarem um
período de “governo feminino” significa que elas tiveram o poder de fato ou
então que podem conquistá-lo, pois, caso contrário, qual seria o motivo de se
criar tais representações sobre o mal que é o governo feminino? Esta
interpretação dos mitos retira o contexto social no qual eles foram produzidos
e desconhece o seu caráter simbólico. Na verdade, no mito não se fala de
“governo feminino” e o que ele retrata só pode ser compreendido levando-se em
conta não só a relação mulheres-homens, mas também todas as demais relações
sociais.
Além disso, não se entende como os
homens, superiores naturais e universais, segundo este tipo de abordagem,
poderiam perder tempo criando fabulosas estórias sobre o “desgoverno feminino”,
se as pobres e universalmente subordinadas mulheres não tivessem nenhuma
condição de implantar o seu domínio. Aliás, esta postura reflete bem a visão de
vítima daqueles oprimidos que não possuem um projeto de libertação. Eternas
vítimas da história, da natureza, do dominante.
Na verdade, não se pode provar a
existência de uma subordinação universal da mulher. Isto se deve ao facto de que
a própria noção de subordinação (tal como muitas outras noções correlatas ou
não, tal como “governo”, hierarquia, etc.) apresenta dificuldades quando
aplicada às sociedades primitivas ou indígenas. O que é a subordinação? O uso
desta palavra, neste caso, tem um sentido claramente não-marxista.
Subordinação, Sub-ordem, Hierarquia, Estratificação. Tais são as palavras que
vêem para substituir a teoria marxista das classes sociais. A mulher
subordinada significa que ela constitui uma sub-ordem. Assim, existem ordens a,
b, c, d, e assim por diante, sendo que as primeiras possuem, no que diz
respeito às sociedades, mais poder, prestigio, autoridade, ou seja, estão no
cume da pirâmide da hierarquia social, da estratificação. Desta forma, se
destrói a visão da totalidade e se isola relações (que passam a ser, na
ideologia feminista mais recente, de “gêneros”...), criando mais uma ideologia,
inversão da realidade.
Neste sentido, existia subordinação da
mulher? Bom, seria muito difícil falar em ordens numa sociedade que os próprios
antropólogos chamam de “holistas”. Além disso, todas as categorias utilizadas
para retratar isto, seriam deslocadas em tais sociedades, pois poder,
prestigio, hierarquia, estratificação, etc., são expressões ilusórias das
relações sociais em nossa sociedade. Aliás, é o estruturalismo que utiliza a
expressão subordinação no estudo das relações de parentesco nas sociedades
simples. A concepção estruturalista reproduz uma posição que é hegemônica na
concepção positivista: busca criar um modelo para encaixar a realidade. A
matemática e a linguística, podem muito bem falar em subordinação, seja de
números ou de orações. A ideologia das ordens vem para justificar a sociedade
existente, pois diz que a divisão da sociedade em ordens (ao invés de classes e
mesmo quando se utiliza esta expressão é no interior de uma concepção de
hierarquia e estratificação) sempre existiu e por isso irá continuar existindo.
Podemos dizer que existem, factualmente, ordens, mas na ideologia tais ordens
são apresentadas como dados naturais (o que torna possível sua universalização)
e a-históricos (logo, universais), pois se omite o seu processo de formação,
reprodução, os seus fundamentos sócio-históricos. Assim, existe subordinação na
sociedade capitalista, mas sua génese e reprodução é omitida e só resta os
dados naturais, comprovados por fatos transformados em fetiches (…).
(continua)
Nildo Viana
Fev.2011
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