segunda-feira, 30 de abril de 2012

A origem da dominação (III)

Death Domination
Death Domination (Photo credit: Wikipedia)


António Campos



O que resta explicar é a origem da dominação. A origem da dominação masculina não precede a dominação de classes pelo simples fato de que nas sociedades primitivas, assim como nas sociedades indígenas, não existe dominação da mulher. Por isso, a questão a ser respondida não é sobre a origem da dominação da mulher e sim a origem da dominação de classe.

O processo histórico que culminou com a formação das sociedades de classes se caracterizou por ser longo. Não cabe aqui remontar o processo de transição da animalidade para a humanidade, que foi extremamente longa, tal como vários pesquisadores reconhecem (Geertz, 1980; Moscovici, 1977; Leontiev, 1980; Engels, 1980). Mas é necessário colocar em evidencia a existência dessa transição. Sem dúvida, o ser humano foi o resultado de um longo processo histórico, ao contrário do que pensam aqueles que consideram que ele surgiu de repente, em um momento que seria um “ponto crítico”.

A vida animal é uma vida comunitária e não é desprovida de laços entre os seres que compõem uma determinada população animal. A teoria de Mendel segundo a qual a vida animal não deve ser estudada a partir de indivíduos e sim a partir de uma população é extremamente correta. Os macacos de várias espécies (rhesus, chimpanzés, gorilas, etc.) vivem em bandos (Moscovici, 1977). As primeiras sociedades humanas compartilham as mesmas características das populações animais. As sociedades de caçadores-coletores também viviam em bandos (Service, 1971; Moscovici, 1977).

O interessante é descobrir alguma hipótese sobre a origem do poder a partir da transformação da sociedade. Podemos reconhecer que as sociedades de caçadores-coletores eram bastante dependentes dos recursos existentes no meio ambiente. A relação que esta sociedade mantinha com o meio ambiente é fundamental para se compreender as suas relações internas. Isto se deve ao fato de que as sociedades primitivas não possuírem as condições de produzirem seus meios de existência, mas apenas de colher ou caçar o que existe de disponível no meio ambiente.

O desenvolvimento das forças produtivas marca a origem das sociedades de classes. Tal desenvolvimento significou o desenvolvimento da “principal força produtiva”, a força de trabalho. Os seres humanos desenvolveram suas habilidades tanto manuais quanto intelectuais através destas mesmas atividades. Eles também criaram meios exteriores que permitiam-lhes enfrentar os obstáculos do meio ambiente. Tais meios foram armas, técnicas, consciência de aspectos do meio ambiente (tanto do mundo animal quanto vegetal), etc.

Isto já vinha ocorrendo desde a época das sociedades de caçadores-coletores, nas quais se utilizavam armas, tais como arcos e flechas, machados de pedra, etc., e também se desenvolvia a consciência relacionada com o processo da caça, onde se buscava descobrir as formas mais adequadas de encontrar e submeter a caça.

Este desenvolvimento produziu um aumento populacional, pois desta forma cai o índice de mortalidade infantil e aumenta-se a idade média de vida das pessoas, já que há o crescimento da produção, a criação de formas de defesa de outros animais mais eficientes, elevava-se a quantidade de alimentação adquirida, etc. Este crescimento populacional, por sua vez, provocou a criação de diversas regras sociais para controlá-lo. Podemos dizer, que uma das principais características deste tipo de sociedade é a busca incessante do controle sobre o aumento populacional. As regras de exogamia têm como principal objetivo controlar este crescimento. O mesmo acontece com as guerras e é este também o motivo do infanticídio realizado por algumas sociedades primitivas.

O desenvolvimento posterior se caracterizou pela aprendizagem da domesticação dos animais e da agricultura. Daí surge a transição do nomadismo ao sedentarismo. Isto tem várias conseqüências para a sociedade primitiva. Uma delas se encontra no fato de que pela primeira vez se podia falar em propriedade do solo. A agricultura abriu caminho para o domínio sobre territórios e o pastoreio abriu caminho para a propriedade de animais. Entretanto, o aparecimento da propriedade não aparece imediatamente com tal transição. Apenas a sua possibilidade está dada. Cabe lembrar que daí surge a propriedade coletiva. Há assim um crescimento da produção, o que provoca o crescimento populacional. Este crescimento já não era controlado pelas comunidades devido ao fato da produção ter aumentado. Mas aí também se revela um crescimento da divisão do trabalho. Surge a especialização do trabalho. Isto é reforçado com o desenvolvimento da cerâmica e da metalurgia. Pastores, agricultores, ferreiros, etc., componham o novo quadro de divisão do trabalho, que se limitava, na comunidade primitiva, à divisão sexual e etária do trabalho. Também surgem os sacerdotes e como veremos adiante, os guerreiros especializados.

A expansão da divisão social do trabalho não constitui ainda as classes sociais devido ao fato de sua interdependência e a existência de uma unidade social que produzia a cooperação sem haver exploração. A divisão existia mas não produzia classes justamente porque a divisão estava submersa na homogeneidade da comunidade. Entretanto, não só a possibilidade estava dada como a tendência ao surgimento das classes já existia e se manifestava. O crescimento da divisão social do trabalho provocou alterações no conjunto das relações sociais, tal como nas relações de parentesco, nas relações intertribais, no novo papel atribuído às crianças, etc.

O aumento da produção não só proporcionou um crescimento populacional como também possibilitou o surgimento da produção mercantil simples, a troca mercantil simples, o sedentarismo, a expansão territorial, etc. A guerra também se tornou mais intensa. Isto ocorreu devido a diversos motivos, sendo que três se destacavam: a) a utilização de metais como o cobre, que não é encontrado com a mesma facilidade que a pedra e que se encontra principalmente em regiões montanhosas, produziu a necessidade de expedições para tais regiões, o que certamente provocava confrontos entre tribos diferentes (sem dúvida, ao lado das tribos de agricultores e pastores continuavam existindo outras tribos, tanto de caçadores-coletores, quanto de outros tipos que poderíamos chamar de “mistos” ou “intermediários”); b) o aumento populacional que produzia “aldeias-filhas” (Gordon Childe, 1988) e, conseqüentemente, a expansão territorial; e c) o esgotamento do solo pelo seu uso sem utilização de técnicas de restauração, o que tornava necessário a mudança de território.

Esta guerra teve como principal conseqüência a formação de uma casta nova: a casta dos guerreiros. Estes se especializaram na guerra e na proteção de suas aldeias. A produção de um excedente visando a manutenção da comunidade em tempos de entre safra acabou sendo utilizada em parte para sustentar esta casta, que buscava cada vez mais se autonomizar.  Os inimigos eram mortos e a descoberta da possibilidade de “domesticar” os seres humanos abriu caminho para a instituição da escravidão. Podemos colocar a hipótese de que foram os guerreiros que se tornaram os primeiros senhores de escravos e formaram uma união para manter o seu domínio sobre os escravos e posteriormente sobre toda a comunidade. Nasce, assim, a sociedade de classes. Esta união de guerreiros para manter o controle dos escravos e posteriormente de toda sociedade é o que chamamos de estado (que devido ao fetichismo da linguagem sua inicial é escrita geralmente com letra maiúscula e aqui rompemos com tal idolatria). Desta forma, as sociedades de classes e o estado surgem simultaneamente, ou seja, a propriedade privada não antecede a existência do estado e o estado não antecede a existência da propriedade privada e, neste sentido, tanto alguns “anarquistas” quanto alguns “marxistas” estão equivocados. Esta é a origem da dominação, do poder. O estado surge com o surgimento da dominação de classe na produção.

O modo de produção escravista se expande e demonstra o seu potencial econômico subjugando todas as outras formas de produção e o desenvolvimento da troca mercantil simples acabou proporcionando o comércio de escravos e o surgimento de uma nova forma de transformar os homens e mulheres livres em escravos: através da dívida. A moeda, já em uso nesta forma de sociedade, e a troca mercantil simples marcariam um meio adicional de se conseguir escravos, a principal fonte de riquezas do escravismo antigo. 

É assim que surge a sociedade de classes. A opressão da mulher, no verdadeiro sentido do termo e não no sentido fantasioso que se vê em certas concepções, surge a partir daí, embora as relações sociais entre os sexos já tivesse começado a alterar-se durante o período de transição. A mulher livre passava a ter uma posição inferior no interior da unidade de produção e a escravização das mulheres se tornou comum na sociedade escravista. As mulheres foram transformadas, ideologicamente, em seres inferiores e equivalentes aos escravos e estrangeiros, ou seja, possuindo um estatuto social e político inferior. No plano social, o trabalho das mulheres livres não era compensado, pois era revertido para o marido, devido à instauração da monogamia e assim se pode instaurar o processo de herança da propriedade e a opressão da mulher pelo homem.

Em outros lugares, em especial na Ásia, houve uma forma diferente de transição para a sociedade de classes. Trata-se do surgimento não do modo de produção escravista e sim do modo de produção tributário, também chamado de modo de produção asiático. Este se caracterizava pelo surgimento de um grupo de pessoas que controlava as diversas comunidades produtoras através de um poder centralizado e realizava a exploração através da cobrança de tributos justificada pela realização de tarefas coletivas de grande envergadura, tal como a irrigação de terras não aptas para a produção. Aqui também o estado surge junto com as classes sociais. A burocracia tributária domina os aldeões e lhes explora, ou seja, a classe proprietária é ao mesmo tempo a classe dirigente.

No modo de produção escravista, os senhores de escravos dominam estes nas unidades de produção e o controle sobre eles e demais classes e frações de classes é realizado pelo poder coletivo desta classe, o estado. Surge uma divisão no interior da classe dominante entre os que se voltam apenas para a exploração na unidade de produção e aqueles que cuidam da manutenção destas relações, ou seja, se aquartelam no estado. No modo de produção tributário, esta divisão não ocorre e esta é uma das principais diferenças entre estes dois modos de produção. Nesta forma de dominação, marcada pelo conflito entre dominantes e dominados, ou seja, pela luta de classes, surge momentos de crise e de decadência. Abre-se espaço para a formação de novas formas de sociedade. Na Europa ocidental, ocorreu a transição para o modo de produção feudal, o que significou a transição da exploração do escravo pela exploração do servo. Posteriormente, neste mesmo continente, surgiria o modo de produção capitalista, uma nova forma de exploração de classe, marcada pela dominação da classe capitalista sobre a classe operária. Este, com sua tendência expansionista, tomou conta do mundo ou, segundo a expressão de Marx, criou “um mundo a sua imagem”.

Enfim, podemos dizer que a origem do poder significa a origem do estado, das classes sociais, da propriedade privada, etc. Isto tudo significa apenas modos de ver a mesma coisa, são aspectos indissoluvelmente ligados. Neste sentido, o poder, isto é, a relação de dominação, surge com as classes sociais e o seu par inseparável, o estado.

Nildo Viana
Fev.2011


Referências Bibliográficas

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