quarta-feira, 18 de abril de 2012

A origem da dominação (II)

World Domination
World Domination (Photo credit: Wikipedia)


António Campos


Assim, o que se vê é que são duas posições antagônicas a respeito da “dominação masculina” e que este antagonismo não é resultado da visão das sociedades primitivas ou indígenas e sim das contradições da nossa sociedade, que é onde se produzem as categorias, ideologias, visões de mundo, “métodos”, com os quais se analisa ao outras sociedades. O antagonismo está em nossa sociedade. A tese da subordinação universal da mulher é uma ideologia burguesa e nada mais do que isto. Ela projeta e assim naturaliza e universaliza uma forma de opressão desta sociedade, e assim contribuiu com sua reprodução.

E a tese do matriarcado? Já se disse que ela foi aceita tanto pelos adeptos do socialismo quanto por extremistas de direita (Fromm, 1977). Na verdade, o que se pode perguntar é se é possível ter existido um “governo feminino” numa sociedade simples. É difícil comprovar tal tese, mas independente dos fatos que podem elucidar a questão, é preciso dizer que não se trata de “governo feminino”, pois não há governo em tais sociedades. Trata-se de uma utilização indevida de uma noção que se aplica apenas às sociedades de classes. Neste sentido, nunca houve matriarcado. Mas se observarmos o que disse Engels (1988), veremos que ele utilizou a palavra “matriarcado” apenas 5 vezes, sendo que utilizava de preferência a expressão “direito materno” (considerando mesmo esta expressão, utilizada originalmente por Bachofen, inexata, pois não existia “direito” nas sociedades primitivas, e isto revela que Engels era muito mais cuidadoso do que muitos antropólogos de hoje, que falam, de forma ideológica, sobre “governo” e outras expressões inaplicáveis nas sociedades simples).

O que significava matriarcado na concepção de Engels? Para ele, o matriarcado representava o fato de que a mulher possuía um “prestígio” e uma posição muito superior a que a mulher encontra nos dias de hoje. Significava também que a descendência era definida pela linha materna (Engels, 1988). Portanto, Engels nunca falou de algo como um “governo feminino”, embora por vezes ele colocava a opinião, retirada dos dados que lhe eram disponíveis na época, de que elas detinham a decisão sobre as questões mais importantes das sociedades primitivas. No sentido restrito apresentado por Engels, não há nenhuma prova de que o “matriarcado” não tenha existido.

O problema, entretanto, está não na discussão da existência de um matriarcado ou não e sim na da existência da subordinação universal da mulher ou não. No primeiro caso, temos uma idéia de que o poder sempre existiu, ou seja, que ele é constitutivo do social. Assim, a abolição do poder seria impossível, pois seria anti-social.

Na verdade, como já colocamos anteriormente, a tese da subordinação universal da mulher não tem uma fundamentação convincente. As pesquisas das sociedades simples são feitas com esquemas analíticos deficientes (que são produtos da mentalidade da sociedade contemporânea, capitalista, e, portanto, estão carregados de preconceito étnico) e uma ideologia típica da sociedade existente (expressa pelos métodos utilizados: estruturalismo, funcionalismo, etc.). É bastante difícil para um ser humano criado em nossa sociedade imaginar uma outra sociedade sem hierarquia, sem poder, sem divisão, etc., e significa uma limitação na apreensão da especificidade das demais sociedades. A linguagem, os métodos, as hipóteses, etc., são produzidas na sociedade capitalista contemporânea e são, na verdade, na grande maioria dos casos, uma projeção desta sobre as sociedades simples. Aliás, tal visão se projeta não só sobre as sociedades simples mas até mesmo sobre as “sociedades animais”, onde se vê, entre outras coisas, hierarquia, que passa, assim, a ser considerada universal (Moscovici, 1977).

A idéia da subordinação da mulher é fundamentada na sua situação inferior nas sociedades simples ou então numa nova interpretação dos mitos indígenas. Novos dados colhidos, entretanto, refutam a fundamentação que se baseia na situação inferior da mulher (Sacks, 1980; Moore, 1991). Resta, então, a fundamentação baseada nos mitos. Esta é muito mais questionável, pois os mitos podem ser interpretados de mil e uma maneiras, inclusive sobre formas extremamente arbitrárias e deslocadas da realidade no qual eles são produzidos.

Apresentar uma interpretação diferente sobre os mitos que colocam a mulher numa posição inferior, por exemplo, pode ilustrar a limitação deste tipo de análise e também observar a flexibilidade com que um mito ou qualquer outra representação cultural oferece para sua interpretação. Uma interpretação alternativa é a de que os mitos quando colocam a mulher como perigosa, feiticeira, etc., não expressa a visão da mulher em si e sim algo que ela representa. Isto é perfeitamente aceitável tendo-se em vista que o mito se manifesta sob uma linguagem simbólica. Nas sociedades simples as relações de parentesco são marcadas pela regra da exogamia, onde um homem de um clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã e vice-versa. Assim, ele irá se casar com uma mulher do outro clã. As relações entre os clãs que compõem uma tribo são marcadas pela necessidade de retribuição, tanto de pessoas (casamento) quanto de bens (presentes, alimentos, etc.). Assim, podemos interpretar estes mitos como sendo expressão não da visão da mulher em geral ou de todas as mulheres e sim uma utilização da mulher para simbolizar o outro clã, o que reflete uma oposição entre clãs e não entre homens e mulheres. Aliás, segundo alguns antropólogos, a mãe não se inclui nunca entre as mulheres dos quais se desconfia.

Também seria útil analisar a interpretação de Lévi-Strauss sobre a “troca de mulheres”. Ele diz que, de acordo com as regras de exogamia, são os homens que trocam as mulheres e não vice-versa (Lévi-Strauss, 1982). Ora, tal interpretação pode ser questionada, pois o que garante que são as mulheres que são trocadas e não os homens? O simples fato da mulher ir para o clã do homem não é suficiente para provar isto, pois o que é a troca? Uma troca ocorre quando alguém oferece algo em retribuição à outra coisa, ou seja, X oferece um bracelete em troca de um colar que recebe de Y. Portanto, há aqui uma relação social entre dois indivíduos (X e Y) e uma transação de dois objetos (bracelete e colar). Esta relação ocorre no contexto das regras de exogamia? É muito difícil alguém dizer isto, pois se persiste uma relação social não entre indivíduos e sim entre grupos de indivíduos (clãs), não há entretanto a transação entre dois objetos, pois se o que se troca são as mulheres, elas são trocadas pelo quê?

Sem dúvida, Lévi-Strauss e seus discípulos poderiam dizer que as mulheres são trocadas por outras mulheres, pois um homem ao adquirir uma mulher de um clã aceita doar todas as mulheres do seu clã a outro clã. Os objetos da transação seriam as mulheres. Esta concepção retoma o velho individualismo de nossa sociedade e o projeta sobre as sociedades simples, pois na verdade a troca ocorre entre clãs e não entre indivíduos, ou seja, não são os homens enquanto indivíduos e sim os clãs que realizam a troca. Em outras palavras, se o clã X oferece uma mulher, resta saber o que ele recebe em retribuição. Dizer que é outra mulher só faria sentido se esta relação ocorresse entre apenas dois clãs, o que não ocorre na maioria dos casos, que envolvem 4 ou 8 clãs e as regras de exogamia diz que o clã X deve buscar parceiros no clã Y, mas este deve buscá-los no clã Z e este, por sua vez, no R e (no caso de quatro clãs) este no X. Desta forma, o clã X ofereceu uma mulher para o clã Y não este não lhe retribuiu com nada. Assim, vê-se que não há troca nenhuma. Se deixarmos de lado quem vai residir no clã de quem, poderíamos aplicar este esquema defeituoso de análise para dizer que o que existe é uma troca de homens. Para se utilizar a idéia de troca teria que se dizer que o que se troca é mulheres por homens ou homens por mulheres e neste sentido não há troca de mulheres e sim troca de homens por mulheres ou vice-versa. Mas como esta relação ocorre entre clãs, então o mais correto é se afirmar que não existe troca nesta relação. O que existe é uma relação social e a idéia de troca não passa de um reflexo da mentalidade da sociedade capitalista que se projeta sobre as sociedades indígenas, onde não há troca de mulheres.

Outra resposta é a de que em troca das mulheres se recebe pequenos objetos (facas, por exemplo) ou animais (porco, por exemplo). Mas aí não se poderia falar em troca de mulheres e sim em troca de mulheres por objetos. A troca mercantil é uma troca de coisas que se apresentam como equivalentes (mercadoria por mercadoria, que podem sem dúvida ter valores diferentes). A troca não-mercantil é uma troca que não precisa possuir elementos materiais para se manifestar e não possui a necessidade de retribuição imediata. A questão dos presentes relacionados com os “casamentos” significa não uma troca e sim um sinal de amizade e nada mais do que isso.

Mesmo se houvesse tal troca, deveria-se reconhecer que quem a realiza são os clãs e não os homens e isto significa que não há subordinação das mulheres. O próprio Lévi-Strauss, que fala que são os homens que trocam as mulheres, apresenta afirmações, quando se refere ao pedido de casamento entre os bosquímanos da África do Sul, que refutam tal idéia:

Os pais da moça, solicitados por um intermediário, respondem: somos pobres, não podemos nos permitir entregar nossa filha. O pretendente visita então sua futura sogra e diz: vim falar com a senhora; se morrer, eu a enterrarei, se seu marido morrer, eu o enterrarei. A isso se segue imediatamente os presentes” (Lévi-Strauss, 1982, p. 105).

Os itálicos não são de Lévi-Strauss, pois isto significaria reconhecer que se há uma troca de mulheres, o pretendente deveria se dirigir ao pai e não a mãe da pretendida. Isto revela antes de tudo a visão sexista e carregada de preconceito étnico que este antropólogo possui das sociedades simples. Para ele, como é comum em nossa sociedade, o homem é o sujeito e a mulher é o objeto e o primeiro controla o segundo. Visão, portanto, sexista.

Se não há troca de mulheres, então não há necessidade de refutar as teses que buscam explicá-las, tal como a de Godelier, que afirma que a troca de mulheres ocorre pela necessidade dos “indígenas” controlarem as “produtoras de força de trabalho” (Godelier, 1980).

(continua)
Nildo Viana
Fev.2011

Enhanced by Zemanta

Sem comentários:

Enviar um comentário