World Domination (Photo credit: Wikipedia) |
António Campos
Assim, o que se vê é que são duas
posições antagônicas a respeito da “dominação masculina” e que este antagonismo
não é resultado da visão das sociedades primitivas ou indígenas e sim das
contradições da nossa sociedade, que é onde se produzem as categorias,
ideologias, visões de mundo, “métodos”, com os quais se analisa ao outras
sociedades. O antagonismo está em nossa sociedade. A tese da subordinação
universal da mulher é uma ideologia burguesa e nada mais do que isto. Ela
projeta e assim naturaliza e universaliza uma forma de opressão desta
sociedade, e assim contribuiu com sua reprodução.
E a tese do matriarcado? Já se disse que
ela foi aceita tanto pelos adeptos do socialismo quanto por extremistas de
direita (Fromm, 1977). Na verdade, o que se pode perguntar é se é possível ter
existido um “governo feminino” numa sociedade simples. É difícil comprovar tal
tese, mas independente dos fatos que podem elucidar a questão, é preciso dizer
que não se trata de “governo feminino”, pois não há governo em tais sociedades.
Trata-se de uma utilização indevida de uma noção que se aplica apenas às
sociedades de classes. Neste sentido, nunca houve matriarcado. Mas se observarmos
o que disse Engels (1988), veremos que ele utilizou a palavra “matriarcado”
apenas 5 vezes, sendo que utilizava de preferência a expressão “direito
materno” (considerando mesmo esta expressão, utilizada originalmente por
Bachofen, inexata, pois não existia “direito” nas sociedades primitivas, e isto
revela que Engels era muito mais cuidadoso do que muitos antropólogos de hoje,
que falam, de forma ideológica, sobre “governo” e outras expressões
inaplicáveis nas sociedades simples).
O que significava matriarcado na
concepção de Engels? Para ele, o matriarcado representava o fato de que a
mulher possuía um “prestígio” e uma posição muito superior a que a mulher
encontra nos dias de hoje. Significava também que a descendência era definida
pela linha materna (Engels, 1988). Portanto, Engels nunca falou de algo como um
“governo feminino”, embora por vezes ele colocava a opinião, retirada dos dados
que lhe eram disponíveis na época, de que elas detinham a decisão sobre as
questões mais importantes das sociedades primitivas. No sentido restrito
apresentado por Engels, não há nenhuma prova de que o “matriarcado” não tenha
existido.
O problema, entretanto, está não na
discussão da existência de um matriarcado ou não e sim na da existência da
subordinação universal da mulher ou não. No primeiro caso, temos uma idéia de
que o poder sempre existiu, ou seja, que ele é constitutivo do social. Assim, a
abolição do poder seria impossível, pois seria anti-social.
Na verdade, como já colocamos
anteriormente, a tese da subordinação universal da mulher não tem uma
fundamentação convincente. As pesquisas das sociedades simples são feitas com
esquemas analíticos deficientes (que são produtos da mentalidade da sociedade
contemporânea, capitalista, e, portanto, estão carregados de preconceito
étnico) e uma ideologia típica da sociedade existente (expressa pelos métodos
utilizados: estruturalismo, funcionalismo, etc.). É bastante difícil para um
ser humano criado em nossa sociedade imaginar uma outra sociedade sem
hierarquia, sem poder, sem divisão, etc., e significa uma limitação na
apreensão da especificidade das demais sociedades. A linguagem, os métodos, as
hipóteses, etc., são produzidas na sociedade capitalista contemporânea e são,
na verdade, na grande maioria dos casos, uma projeção desta sobre as sociedades
simples. Aliás, tal visão se projeta não só sobre as sociedades simples mas até
mesmo sobre as “sociedades animais”, onde se vê, entre outras coisas,
hierarquia, que passa, assim, a ser considerada universal (Moscovici, 1977).
A idéia da subordinação da mulher é
fundamentada na sua situação inferior nas sociedades simples ou então numa nova
interpretação dos mitos indígenas. Novos dados colhidos, entretanto, refutam a
fundamentação que se baseia na situação inferior da mulher (Sacks, 1980; Moore,
1991). Resta, então, a fundamentação baseada nos mitos. Esta é muito mais
questionável, pois os mitos podem ser interpretados de mil e uma maneiras,
inclusive sobre formas extremamente arbitrárias e deslocadas da realidade no qual
eles são produzidos.
Apresentar uma interpretação diferente
sobre os mitos que colocam a mulher numa posição inferior, por exemplo, pode
ilustrar a limitação deste tipo de análise e também observar a flexibilidade
com que um mito ou qualquer outra representação cultural oferece para sua
interpretação. Uma interpretação alternativa é a de que os mitos quando colocam
a mulher como perigosa, feiticeira, etc., não expressa a visão da mulher em si
e sim algo que ela representa. Isto é perfeitamente aceitável tendo-se em vista
que o mito se manifesta sob uma linguagem simbólica. Nas sociedades simples as
relações de parentesco são marcadas pela regra da exogamia, onde um homem de um
clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã e vice-versa. Assim, ele irá
se casar com uma mulher do outro clã. As relações entre os clãs que compõem uma
tribo são marcadas pela necessidade de retribuição, tanto de pessoas
(casamento) quanto de bens (presentes, alimentos, etc.). Assim, podemos
interpretar estes mitos como sendo expressão não da visão da mulher em geral ou
de todas as mulheres e sim uma utilização da mulher para simbolizar o outro
clã, o que reflete uma oposição entre clãs e não entre homens e mulheres.
Aliás, segundo alguns antropólogos, a mãe não se inclui nunca entre as mulheres
dos quais se desconfia.
Também seria útil analisar a
interpretação de Lévi-Strauss sobre a “troca de mulheres”. Ele diz que, de
acordo com as regras de exogamia, são os homens que trocam as mulheres e não
vice-versa (Lévi-Strauss, 1982). Ora, tal interpretação pode ser questionada,
pois o que garante que são as mulheres que são trocadas e não os homens? O
simples fato da mulher ir para o clã do homem não é suficiente para provar
isto, pois o que é a troca? Uma troca ocorre quando alguém oferece algo em
retribuição à outra coisa, ou seja, X oferece um bracelete em troca de um colar
que recebe de Y. Portanto, há aqui uma relação social entre dois indivíduos (X
e Y) e uma transação de dois objetos (bracelete e colar). Esta relação ocorre no
contexto das regras de exogamia? É muito difícil alguém dizer isto, pois se
persiste uma relação social não entre indivíduos e sim entre grupos de
indivíduos (clãs), não há entretanto a transação entre dois objetos, pois se o
que se troca são as mulheres, elas são trocadas pelo quê?
Sem dúvida, Lévi-Strauss e seus
discípulos poderiam dizer que as mulheres são trocadas por outras mulheres,
pois um homem ao adquirir uma mulher de um clã aceita doar todas as mulheres do
seu clã a outro clã. Os objetos da transação seriam as mulheres. Esta concepção
retoma o velho individualismo de nossa sociedade e o projeta sobre as
sociedades simples, pois na verdade a troca ocorre entre clãs e não entre
indivíduos, ou seja, não são os homens enquanto indivíduos e sim os clãs que
realizam a troca. Em outras palavras, se o clã X oferece uma mulher, resta
saber o que ele recebe em retribuição. Dizer que é outra mulher só faria
sentido se esta relação ocorresse entre apenas dois clãs, o que não ocorre na
maioria dos casos, que envolvem 4 ou 8 clãs e as regras de exogamia diz que o
clã X deve buscar parceiros no clã Y, mas este deve buscá-los no clã Z e este,
por sua vez, no R e (no caso de quatro clãs) este no X. Desta forma, o clã X
ofereceu uma mulher para o clã Y não este não lhe retribuiu com nada. Assim,
vê-se que não há troca nenhuma. Se deixarmos de lado quem vai residir no clã de
quem, poderíamos aplicar este esquema defeituoso de análise para dizer que o
que existe é uma troca de homens. Para se utilizar a idéia de troca teria que
se dizer que o que se troca é mulheres por homens ou homens por mulheres e
neste sentido não há troca de mulheres e sim troca de homens por mulheres ou
vice-versa. Mas como esta relação ocorre entre clãs, então o mais correto é se
afirmar que não existe troca nesta relação. O que existe é uma relação social e
a idéia de troca não passa de um reflexo da mentalidade da sociedade
capitalista que se projeta sobre as sociedades indígenas, onde não há troca de
mulheres.
Outra resposta é a de que em troca das
mulheres se recebe pequenos objetos (facas, por exemplo) ou animais (porco, por
exemplo). Mas aí não se poderia falar em troca de mulheres e sim em troca de
mulheres por objetos. A troca mercantil é uma troca de coisas que se apresentam
como equivalentes (mercadoria por mercadoria, que podem sem dúvida ter valores
diferentes). A troca não-mercantil é uma troca que não precisa possuir
elementos materiais para se manifestar e não possui a necessidade de
retribuição imediata. A questão dos presentes relacionados com os “casamentos”
significa não uma troca e sim um sinal de amizade e nada mais do que isso.
Mesmo se houvesse tal troca, deveria-se
reconhecer que quem a realiza são os clãs e não os homens e isto significa que
não há subordinação das mulheres. O próprio Lévi-Strauss, que fala que são os
homens que trocam as mulheres, apresenta afirmações, quando se refere ao pedido
de casamento entre os bosquímanos da África do Sul, que refutam tal idéia:
“Os pais da moça, solicitados por um
intermediário, respondem: somos pobres, não podemos nos permitir entregar nossa
filha. O pretendente visita então sua futura sogra e diz: vim falar com a
senhora; se morrer, eu a enterrarei, se seu marido morrer, eu o enterrarei. A
isso se segue imediatamente os presentes” (Lévi-Strauss, 1982, p. 105).
Os itálicos não são de Lévi-Strauss,
pois isto significaria reconhecer que se há uma troca de mulheres, o
pretendente deveria se dirigir ao pai e não a mãe da pretendida. Isto revela
antes de tudo a visão sexista e carregada de preconceito étnico que este
antropólogo possui das sociedades simples. Para ele, como é comum em nossa
sociedade, o homem é o sujeito e a mulher é o objeto e o primeiro controla o
segundo. Visão, portanto, sexista.
Se não há troca de mulheres, então não
há necessidade de refutar as teses que buscam explicá-las, tal como a de
Godelier, que afirma que a troca de mulheres ocorre pela necessidade dos
“indígenas” controlarem as “produtoras de força de trabalho” (Godelier, 1980).
(continua)
Nildo Viana
Fev.2011
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