sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Café Marx




... e a Doença de Alzheimer.

«Envelhecer significa a transformação gradual (ou antes, súbita) de um mundo de rostos familiares (quer seja de amigos ou de inimigos) numa espécie de deserto habitado por rostos estranhos. Por outras palavras, não sou eu que me retiro do mundo, é o mundo que se desfaz». (Hannah Arendt)

Goethe definiu o envelhecer como o retirar-se gradualmente da aparência. Porém, quando começou a envelhecer, Hannah Arendt viveu essa separação do mundo, não como retirada do mundo, mas como o próprio mundo a retirar-se à sua volta, ou melhor, como a progressiva dissolução de um mundo de seres prontos a acolher o seu aparecer, através do desaparecimento desses seres. Arendt capta e tematiza uma experiência universal: a morte dos outros próximos, amigos ou inimigos, faz de nós órfãos de mundo: o nosso mundo começa a estreitar-se e a retirar-se gradual ou subitamente até ao seu desaparecimento final.

De certo modo, o crescimento e o envelhecimento são etapas opostas do ciclo vital: o envelhecimento estreita os horizontes do nosso mundo, definidos e traçados pelos adultos – esses estranhos cartógrafos remotos que traçam o mapa do nosso sistema localizado de relações de conflito ou de cooperação no mundo - durante o nosso período de crescimento. Os endereços que coleccionámos durante este período de expansão - com o objectivo de ingressarmos na cosmovisão dos adultos - começam a desaparecer à medida que envelhecemos: cada endereço conquistado por cada um de nós é mais uma localização do nosso eu na rede de relações de um mapa social em expansão, e a perda de um endereço - a morte de um outro, querido ou detestado - implica o retraimento, ou melhor, a contracção desse nosso mundo de outros prontos a acolher o nosso aparecer. A troca de e-mails pode ajudar a compreender a ideia nuclear subjacente à concepção arendtiana do envelhecimento.

Quando envio o meu endereço exacto a um «estranho» com quem teclei algures num chat e recebo a sua resposta, a minha rede de relações alarga-se, na medida em que me tornei visível para mais um outro ser. Mas, se esse outro morrer mais tarde e deixar por isso de me responder, o meu mundo de relações começa a contrair-se. Ora, envelhecer é precisamente tornarmo-nos invisíveis para o mundo, através da morte dos outros que acolhiam o nosso aparecer. Envelhecer é viver essa dolorosa experiência do nosso próprio apagamento: a "morte" rouba-nos os outros prontos a receber a revelação - a manifestação - do nosso ser singular e a ser testemunhas dela. O facto de não podermos manifestar a mais ninguém a nossa auto-revelação amputa-nos da nossa abertura ao mundo. (Fonex: Estou a seguir um caminho muito complexo! Claustrofobia sociológica, a minha e a de Arendt! :::)

A doença de Alzheimer coloca um grande desafio à ontologia fenomenológica que suporta o pensamento político de Hannah Arendt: «O mundo em que os homens nascem contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas, que têm todas em comum o facto de aparecerem e, por essa razão, são feitas para serem vistas, ouvidas, tocadas, saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Neste mundo em que entramos, aparecendo vindos de parte nenhuma, e do qual desaparecemos para parte nenhuma, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas vivas. Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não pressuponha um espectador. Por outras palavras, nada do que é, na medida em que aparece, existe no singular; tudo o que é está destinado a ser percebido por alguém. 

Não é o Homem mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra» (Arendt). Não pretendo impugnar esta coincidência entre o ser e a aparência, até porque ela não é estranha à dialéctica: o que pretendo fazer é pensar a condição terrível - e anti-humana – do doente de Alzheimer à luz do princípio de que o aparecer é um co-aparecer, na medida em que os outros seres aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. Para Arendt, o sujeito puro espectador não existe: cada um de nós é, ao mesmo tempo, espectador e actor nesse palco que é o mundo comum: «Quem vê quer ser visto, quem ouve quer ser ouvido, quem toca quer ser tocado» (Arendt). (:::)

J Francisco Saraiva de Sousa
https://blogger.googleusercontent.com/tracker/1892689378416195138-1416946024537561197?l=cyberdemocracia.blogspot.com
Fev.2011

Sem comentários:

Enviar um comentário