Raul Iturra
2. TÉCNICAS DO PROCESSO EDUCATIVO[...]
c) Oralidade, virtude,
crença
A técnica de fixar pela memória ou pela
escrita que se debruça acerca da qualidade das pessoas medidas ou contrastadas
pelo padrão histórico feito pela ideia de divindade, é o resultado de entender
o mundo caso a caso. É possível apreciar que um grande número de pessoas, mesmo
que tenha aprendido, não usa para se exprimir outros signos que não sejam os de
criação local. A oralidade, técnica que coexiste com a escrita e a complementa
na circulação do saber, debruça-se acerca da qualidade dos casos particulares e
de relação em relação, de facto a facto, e serve-se para a reprodução do seu
conteúdo partilhado pelos indivíduos que compõem o grupo social, a lembrança.
Há a construção personalizada de um número de virtudes que se adscrevem a vários
indivíduos e que, na negativa, são sistematizados pela dor que causa o
rompimento da normatividade vigente, construída com base nas formas
excepcionais com que trabalham os seus recursos determinadas pessoas que são de
imitar. O culto dos mortos mostra como a lembrança do que o indivíduo sabia
fazer passa para a memória do grupo social, na medida que se reproduzem os seus
louvores. A liturgia dos santos, as suas vidas, os atributos de Deus, definem
os conceitos que constroem a epistemologia com que se constrói a explicação do
funcionamento e objectivo das coisas e como devem orientar-se as relações entre
as pessoas. É possível ver que os primeiros textos para alfabetizar são lições
de moral, lá pelos meados do século XIX; os segundos são homilias acerca da
bondade e da maldade em contextos racionais; os terceiros são a abstracção das
formas familiares de vida e trabalho, enquanto os quartos, os contemporâneos,
usam a metodologia do signo e só depois falam de questões sociais, todas elas
repetindo o real que se vive no quotidiano. Parece ser como se a memória
acumulada e mudada marcasse a transição de uma cultura que os letrados
desenvolvem em uso pleno da mudança através do tempo, que aproveita a
oralidade. Os romances e telenovelas que o agarram para circular saber,
afastam-se pouco a pouco da coincidência entre ideias reprodutivas divinas do
quotidiano, prática com base na solidariedade parental e vicinal, e textos que
reproduzem esse quotidiano divinizado na letra do texto. É quando este modus vivendl se encontra na escola com o utilitarismo
económico que permeia os textos, orienta os conteúdos e define a pedagogia, que
a descontinuidade, (mais esta razão a juntar às anteriores), acaba por
aparecer.
d) Ver-fazer,
ouvir-dizer: o desaproveitamento do quotidiano no ensino racional
Parece-me, pois, que a sobreposição da
imagem igualitária e homogénea do cidadão por sobre as particularidades da
divindade encarada em virtudes pessoais, é uma das descontinuidades entre
oralidade e escrita que acarreta i6sucesso escolar. Parece-me também que o
anonimato na substituição entre cidadãos em lugares sociais a que se concorre –
salvo seja o compadrio e a clientela que é por estas ideias possível, comparado
com a substituição em lugares sociais entendidos, praticados, definidos e
adscritos, e onde o saber para o primeiro é escrito e isolado enquanto que para
o segundo é oral e partilhado, é um segundo motivo para a descontinuidade. Um
terceiro, o conteúdo da escrita orienta-se pela ideia que governa a reprodução
social, a lei do valor, que dá a medida a tudo o resto e que se opõe à
personalização que até na escrita usada por todos aparece: a divindade, que
contribui para uma outra descontinuidade. O prob1ema central é tanto dizer, por
uma parte, e ler, por outra, ou fazer a lista de comportamentos que são
manipulados pela prática. Central é a diferença entre calcular pela opção
maximizadora e calcular pela bondade e maldade sistematizada. Esta segunda via
está, além disso, avaliada pelo que se vê fazer não só no campo de trabalho,
bem como no (mais comprometedor) da ética e da afectividade com que a geração
mais velha se comporta e transmite o seu saber aos mais jovens. É um processo
imitativo, justo e emotivo que se procura definir na repetição do saber que se
vê fazer de uma maneira respeitável, com a autoridade que coincide com os
atributos que o grupo define para si na divindade. O saber da escola é céptico,
limpo, argumentativo, com intermediados profissionais que governam a sua
transmissão por uma vontade externa – o programa do Estado – e que só tem um
compromisso com a habilidade do estudante e não com o resto dele: seu corpo,
seus talentos, suas aptidões, suas emoções. O ensino que desenvolve a razão
pela procura da prova, assume que será em casa que tudo o resto será tratado,
enquanto em casa pensam que a sabedoria letrada é suficiente para subtrair a
criança do envolvente sistema com que a amam, criam e ensinam. Sem os pais
entenderem a lei do valor, o filho não avança; sem o professor saber que esta é
a razão da descontinuidade, não entenderá o objecto de ensinar. Se só ensinarem
a escrever![…]
(continua)
(Do Aventar)
Sem comentários:
Enviar um comentário