terça-feira, 5 de março de 2013

A DESCONTINUIDADE ENTRE A ESCRITA E A ORALIDADE NA APRENDIZAGEM (III)



 
Raul Iturra

2. TÉCNICAS DO PROCESSO EDUCATIVO[...]

c) Oralidade, virtude, crença

A técnica de fixar pela memória ou pela escrita que se debruça acerca da qualidade das pessoas medidas ou contrastadas pelo padrão histórico feito pela ideia de divindade, é o resultado de entender o mundo caso a caso. É possível apreciar que um grande número de pessoas, mesmo que tenha aprendido, não usa para se exprimir outros signos que não sejam os de criação local. A oralidade, técnica que coexiste com a escrita e a complementa na circulação do saber, debruça-se acerca da qualidade dos casos particulares e de relação em relação, de facto a facto, e serve-se para a reprodução do seu conteúdo partilhado pelos indivíduos que compõem o grupo social, a lembrança. Há a construção personalizada de um número de virtudes que se adscrevem a vários indivíduos e que, na negativa, são sistematizados pela dor que causa o rompimento da normatividade vigente, construída com base nas formas excepcionais com que trabalham os seus recursos determinadas pessoas que são de imitar. O culto dos mortos mostra como a lembrança do que o indivíduo sabia fazer passa para a memória do grupo social, na medida que se reproduzem os seus louvores. A liturgia dos santos, as suas vidas, os atributos de Deus, definem os conceitos que constroem a epistemologia com que se constrói a explicação do funcionamento e objectivo das coisas e como devem orientar-se as relações entre as pessoas. É possível ver que os primeiros textos para alfabetizar são lições de moral, lá pelos meados do século XIX; os segundos são homilias acerca da bondade e da maldade em contextos racionais; os terceiros são a abstracção das formas familiares de vida e trabalho, enquanto os quartos, os contemporâneos, usam a metodologia do signo e só depois falam de questões sociais, todas elas repetindo o real que se vive no quotidiano. Parece ser como se a memória acumulada e mudada marcasse a transição de uma cultura que os letrados desenvolvem em uso pleno da mudança através do tempo, que aproveita a oralidade. Os romances e telenovelas que o agarram para circular saber, afastam-se pouco a pouco da coincidência entre ideias reprodutivas divinas do quotidiano, prática com base na solidariedade parental e vicinal, e textos que reproduzem esse quotidiano divinizado na letra do texto. É quando este modus vivendl se encontra na escola com o utilitarismo económico que permeia os textos, orienta os conteúdos e define a pedagogia, que a descontinuidade, (mais esta razão a juntar às anteriores), acaba por aparecer.

d) Ver-fazer, ouvir-dizer: o desaproveitamento do quotidiano no ensino racional

Parece-me, pois, que a sobreposição da imagem igualitária e homogénea do cidadão por sobre as particularidades da divindade encarada em virtudes pessoais, é uma das descontinuidades entre oralidade e escrita que acarreta i6sucesso escolar. Parece-me também que o anonimato na substituição entre cidadãos em lugares sociais a que se concorre – salvo seja o compadrio e a clientela que é por estas ideias possível, comparado com a substituição em lugares sociais entendidos, praticados, definidos e adscritos, e onde o saber para o primeiro é escrito e isolado enquanto que para o segundo é oral e partilhado, é um segundo motivo para a descontinuidade. Um terceiro, o conteúdo da escrita orienta-se pela ideia que governa a reprodução social, a lei do valor, que dá a medida a tudo o resto e que se opõe à personalização que até na escrita usada por todos aparece: a divindade, que contribui para uma outra descontinuidade. O prob1ema central é tanto dizer, por uma parte, e ler, por outra, ou fazer a lista de comportamentos que são manipulados pela prática. Central é a diferença entre calcular pela opção maximizadora e calcular pela bondade e maldade sistematizada. Esta segunda via está, além disso, avaliada pelo que se vê fazer não só no campo de trabalho, bem como no (mais comprometedor) da ética e da afectividade com que a geração mais velha se comporta e transmite o seu saber aos mais jovens. É um processo imitativo, justo e emotivo que se procura definir na repetição do saber que se vê fazer de uma maneira respeitável, com a autoridade que coincide com os atributos que o grupo define para si na divindade. O saber da escola é céptico, limpo, argumentativo, com intermediados profissionais que governam a sua transmissão por uma vontade externa – o programa do Estado – e que só tem um compromisso com a habilidade do estudante e não com o resto dele: seu corpo, seus talentos, suas aptidões, suas emoções. O ensino que desenvolve a razão pela procura da prova, assume que será em casa que tudo o resto será tratado, enquanto em casa pensam que a sabedoria letrada é suficiente para subtrair a criança do envolvente sistema com que a amam, criam e ensinam. Sem os pais entenderem a lei do valor, o filho não avança; sem o professor saber que esta é a razão da descontinuidade, não entenderá o objecto de ensinar. Se só ensinarem a escrever![…]

(continua)

(Do Aventar)

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