sexta-feira, 15 de março de 2013

As Raízes da Violência Policial(I)



 
Nildo Viana
O que justifica a existência do sistema policial é a sua função de cuidar da segurança pública e garantir o cumprimento das leis. Esta justificativa, entretanto, se revela ideológica, já que inverte a realidade e esconde o fato de que o sistema policial, muitas vezes, cumpre um papel, oposto ao que se propõe. Porquanto o sistema policial possua uma função que vai além do combate a criminalidade e em defesa do cumprimento das leis instituídas (incluindo a repressão política), ele, além disso, ultrapassa os limites legais de suas funções e reproduz a criminalidade. O sistema policial vem sendo envolvido em constantes acusações de abuso de autoridade, de corrupção, de envolvimento em crimes, de formação de grupos de extermínio, etc. Resta sabermos as razões que levam uma instituição, que foi criada para combater a criminalidade, e que, em muitos casos, acaba reproduzindo-a.
Pode-se argumentar que os baixos salários dos policiais, a ineficiência e morosidade do poder judiciário são algumas das razões que levam a deformação do sistema policial. Isto, sem dúvida, é verdade, mas não é suficiente para explicar a escolha das “soluções” feitas pelos agentes policiais.
O abuso de autoridade e a formação de grupos de extermínio é produto de uma reação às deficiências do sistema judiciário nacional, mas é uma reação específica a estas deficiências. Esta reação se caracteriza pela utilização de meios criminosos para combater a criminalidade. Desta forma, rompe com a legalidade sob o pretexto de mantê-la, ou seja, o problema deixa de ser a criminalidade para ser o criminoso. A criminalidade é uma relação social que colocam sujeitos sociais frente a frente e que apresenta, nesta relação, o desrespeito aos direitos alheios, rompendo, assim, com a legalidade. Portanto, é o infrator da lei, definido pela infração da lei, que é o criminoso. O policial que comete abuso de autoridade ou participa de grupos de extermínio está preocupado com o criminoso e não com a criminalidade e por isso reproduz esta, tornando-se um criminoso também. O abuso de autoridade e o extermínio são infrações contra a lei e o infrator, no caso, o policial, é um criminoso como outro qualquer. A única diferença são as motivações do criminoso: o assaltante pode roubar comida por estar com fome e o policial que o prende e depois o espanca o faz por se considerar “a encarnação da justiça”.
Esta é uma das raízes da violência policial. O policial tem a tendência a se considerar como a ‘encarnação da justiça”. Um conjunto de fatores cria tal ilusão: a farda policial, o treinamento recebido e a própria função de “representante da lei” são alguns destes fatores mas existem outros, como, por exemplo, a imagem do policial criada pela sociedade que o distingue dos demais “cidadãos comuns”. Os filmes policiais que, na maioria dos casos, mostram o herói policial que rompe com as diretrizes apresentadas pelos seus superiores e faz a justiça “ao seu modo” ou “pelas próprias mãos” é outro reflexo desta imagem social do policial. A farda é uma distinção simbólica que expressa uma distinção social. A distinção entre aquele que executa a lei – o policial – e aquele que apenas pode reivindicar tal execução (o “cidadão comum”) é reconhecida pela sociedade e isto reforça o sentimento de “justiceiro” que domina os agentes policiais. Assim, o policial passa a se considerar “acima dos mortais” ou seja, considera-se acima das limitações humanas, dotados de infalibilidade, sem problemas de ordem psíquica, cultural, afetiva, intelectual, etc., e que por isso sempre pode julgar com “neutralidade” e “justiça” os demais cidadãos. O “representante da lei” se autonomiza e passa a se considerar a própria lei e volta-se contra ela, infringindo-a e, ao mesmo tempo, não infringindo-a, segundo a racionalização do policial, por que ela não é mais àquela da legislação e sim ele – o policial – com sua vontade arbitrária e independente de quaisquer critérios.
Portanto, o policial se julga a “encarnação da justiça” e isto lhe dá o direito, do seu ponto de vista, de infringir a própria lei que lhe concedeu a autoridade de ser seu “representante”. Outras causas para tal comportamento já foram explicitadas pela psicanálise nos seus estudos sobre a personalidade autoritária. Não cabe aqui aprofundar a contribuição da psicanálise, mas é necessário deixar claro que a família, tal é constituída hoje, é uma fonte para a formação de pessoas com uma personalidade autoritária e a escolha da carreira policial já deixa implícito, em muitos casos, as motivações psíquicas que lhe dão origem.
Isto somado com a “imagem social” do policial, reforçada pela própria prática dos policiais, e com a convivência em uma ambiente de criminalidade produzem as motivações da violência policial. Porém, existe uma outra razão que gera não só a violência policial, mas também a própria corrupção do sistema policial. Esta é o que podemos chamar de sociabilidade, ou seja, o conjunto das relações sociais que reproduzimos cotidianamente de forma automática e semi-consciente, gerando uma determinada mentalidade dominante pautada pelos valores dominantes.
A sociedade capitalista é competitiva por natureza e isto se manifesta em todas as relações sociais. Os indivíduos introjetam em seu universo mental estas relações e assim a competição acaba se tornando um componente da mentalidade das pessoas. A “competição social” surge da competição que ocorre derivada das relações de produção capitalistas e se expande para todos os aspectos das relações sociais (“políticos”, artísticos, culturais, cotidianos, esportivos, entre outros). A vida torna-se uma competição com objetivo de atingir o cume da pirâmide social, na realidade através do “poder econômico”, ou na aparência, através da busca de status. Logo, todos os indivíduos buscam a ascensão social, independente de quais forem os meios para atingir isto. O policial está envolvido nestas relações sociais e as reproduz. A sua origem social, geralmente dos estratos mais pobres da população, e os seus baixos salários, juntamente com outros fatores, colocam-no em uma situação desvantajosa na competição social. Isto sem falar que sua situação de vida precária pode produzir constantes conflitos familiares. Ele passa a ter a necessidade psíquica de compensar isto. Além disso, cria-se uma situação de insatisfação que torna-o agressivo e reforça suas tendências autoritárias. Assim, ele se torna mais corruptível, por um lado, e mais autoritário e violento, por outro. Esta é a principal fonte da violência policial e, como se pode observar, há um entrelaçamento entre todas as suas determinações e que envolvem o conjunto das relações sociais.[…]
(continua)

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