Nildo Viana
O que
justifica a existência do sistema policial é a sua função de cuidar da
segurança pública e garantir o cumprimento das leis. Esta justificativa,
entretanto, se revela ideológica, já que inverte a realidade e esconde o fato
de que o sistema policial, muitas vezes, cumpre um papel, oposto ao que se
propõe. Porquanto o sistema policial possua uma função que vai além do combate
a criminalidade e em defesa do cumprimento das leis instituídas (incluindo a
repressão política), ele, além disso, ultrapassa os limites legais de suas
funções e reproduz a criminalidade. O sistema policial vem sendo envolvido em
constantes acusações de abuso de autoridade, de corrupção, de envolvimento em
crimes, de formação de grupos de extermínio, etc. Resta sabermos as razões que
levam uma instituição, que foi criada para combater a criminalidade, e que, em
muitos casos, acaba reproduzindo-a.
Pode-se
argumentar que os baixos salários dos policiais, a ineficiência e morosidade do
poder judiciário são algumas das razões que levam a deformação do sistema
policial. Isto, sem dúvida, é verdade, mas não é suficiente para explicar a
escolha das “soluções” feitas pelos agentes policiais.
O abuso de
autoridade e a formação de grupos de extermínio é produto de uma reação às
deficiências do sistema judiciário nacional, mas é uma reação específica a
estas deficiências. Esta reação se caracteriza pela utilização de meios
criminosos para combater a criminalidade. Desta forma, rompe com a legalidade
sob o pretexto de mantê-la, ou seja, o problema deixa de ser a criminalidade
para ser o criminoso. A criminalidade é uma relação social que colocam sujeitos
sociais frente a frente e que apresenta, nesta relação, o desrespeito aos
direitos alheios, rompendo, assim, com a legalidade. Portanto, é o infrator da
lei, definido pela infração da lei, que é o criminoso. O policial que comete
abuso de autoridade ou participa de grupos de extermínio está preocupado com o
criminoso e não com a criminalidade e por isso reproduz esta, tornando-se um
criminoso também. O abuso de autoridade e o extermínio são infrações contra a
lei e o infrator, no caso, o policial, é um criminoso como outro qualquer. A
única diferença são as motivações do criminoso: o assaltante pode roubar comida
por estar com fome e o policial que o prende e depois o espanca o faz por se
considerar “a encarnação da justiça”.
Esta é uma
das raízes da violência policial. O policial tem a tendência a se considerar
como a ‘encarnação da justiça”. Um conjunto de fatores cria tal ilusão: a farda
policial, o treinamento recebido e a própria função de “representante da lei”
são alguns destes fatores mas existem outros, como, por exemplo, a imagem do
policial criada pela sociedade que o distingue dos demais “cidadãos comuns”. Os
filmes policiais que, na maioria dos casos, mostram o herói policial que rompe
com as diretrizes apresentadas pelos seus superiores e faz a justiça “ao seu
modo” ou “pelas próprias mãos” é outro reflexo desta imagem social do policial.
A farda é uma distinção simbólica que expressa uma distinção social. A
distinção entre aquele que executa a lei – o policial – e aquele que apenas
pode reivindicar tal execução (o “cidadão comum”) é reconhecida pela sociedade
e isto reforça o sentimento de “justiceiro” que domina os agentes policiais.
Assim, o policial passa a se considerar “acima dos mortais” ou seja,
considera-se acima das limitações humanas, dotados de infalibilidade, sem
problemas de ordem psíquica, cultural, afetiva, intelectual, etc., e que por
isso sempre pode julgar com “neutralidade” e “justiça” os demais cidadãos. O
“representante da lei” se autonomiza e passa a se considerar a própria lei e
volta-se contra ela, infringindo-a e, ao mesmo tempo, não infringindo-a,
segundo a racionalização do policial, por que ela não é mais àquela da
legislação e sim ele – o policial – com sua vontade arbitrária e independente
de quaisquer critérios.
Portanto, o
policial se julga a “encarnação da justiça” e isto lhe dá o direito, do seu
ponto de vista, de infringir a própria lei que lhe concedeu a autoridade de ser
seu “representante”. Outras causas para tal comportamento já foram explicitadas
pela psicanálise nos seus estudos sobre a personalidade autoritária. Não cabe
aqui aprofundar a contribuição da psicanálise, mas é necessário deixar claro
que a família, tal é constituída hoje, é uma fonte para a formação de pessoas
com uma personalidade autoritária e a escolha da carreira policial já deixa
implícito, em muitos casos, as motivações psíquicas que lhe dão origem.
Isto somado
com a “imagem social” do policial, reforçada pela própria prática dos
policiais, e com a convivência em uma ambiente de criminalidade produzem as
motivações da violência policial. Porém, existe uma outra razão que gera não só
a violência policial, mas também a própria corrupção do sistema policial. Esta
é o que podemos chamar de sociabilidade, ou seja, o conjunto das relações
sociais que reproduzimos cotidianamente de forma automática e semi-consciente,
gerando uma determinada mentalidade dominante pautada pelos valores dominantes.
A sociedade
capitalista é competitiva por natureza e isto se manifesta em todas as relações
sociais. Os indivíduos introjetam em seu universo mental estas relações e assim
a competição acaba se tornando um componente da mentalidade das pessoas. A
“competição social” surge da competição que ocorre derivada das relações de
produção capitalistas e se expande para todos os aspectos das relações sociais
(“políticos”, artísticos, culturais, cotidianos, esportivos, entre outros). A
vida torna-se uma competição com objetivo de atingir o cume da pirâmide social,
na realidade através do “poder econômico”, ou na aparência, através da busca
de status. Logo, todos os indivíduos buscam a ascensão social,
independente de quais forem os meios para atingir isto. O policial está
envolvido nestas relações sociais e as reproduz. A sua origem social,
geralmente dos estratos mais pobres da população, e os seus baixos salários,
juntamente com outros fatores, colocam-no em uma situação desvantajosa na
competição social. Isto sem falar que sua situação de vida precária pode
produzir constantes conflitos familiares. Ele passa a ter a necessidade
psíquica de compensar isto. Além disso, cria-se uma situação de insatisfação
que torna-o agressivo e reforça suas tendências autoritárias. Assim, ele se
torna mais corruptível, por um lado, e mais autoritário e violento, por outro.
Esta é a principal fonte da violência policial e, como se pode observar, há um
entrelaçamento entre todas as suas determinações e que envolvem o conjunto das
relações sociais.[…]
(continua)
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