quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Escolhas impossíveis numa depressão mundial

Through the Great DepressionImage by B Tal via Flickr


António Campos

Enquanto os líderes mundiais e os especialistas continuam a negar a realidade da depressão mundial – nem sequer usam a palavra – as escolhas impossíveis que governo atrás de governo enfrentam tornam-se cada vez mais óbvias a cada dia. Considerem o que aconteceu apenas no mês passado.

Os Estados Unidos tiveram os seus piores índices de desemprego de há um bom tempo. Sim, houve alguns empregos novos, mas 95% deles eram de trabalhadores temporários contratados para o censo. Os empregadores privados criaram apenas 10% dos empregos que se esperava. Apesar disto, tornou-se politicamente impossível conseguir que o Congresso aprove mais verbas de estímulo. E a Reserva Federal deixou de comprar títulos do Tesouro e de hipotecas. Estas eram as duas principais estratégias de criação de emprego. Porquê? O apelo a cortes no défice tornaram-se muito fortes.
A consequência mais imediata pode ser vista ao nível dos orçamentos dos governos dos Estados. O custo do Medicaid subiu devido à crise económica. Este custo é da responsabilidade dos Estados. No ano passado, houve a ajuda de subsídios federais ampliados aos gastos dos Estados com o Medicaid. O Congresso não vai renová-los. O governador Edward Rendell, da Pensilvânia, diz que isto vai aumentar em dois terços o défice orçamentário do seu Estado, e forçá-lo a despedir 20.000 professores, polícias e outros funcionários do governo. Isto, claro, além da perda dos serviços médicos para muitas pessoas.

Na Grã-Bretanha, o novo primeiro-ministro, David Cameron, diz que o corte do crédito é «a questão mais urgente que a Grã-Bretanha enfrenta hoje». O Financial Times resume as suas propostas na sua manchete: «Cameron inicia uma era de austeridade». E avalia assim esta política: «Se o governo vai fazer cortes tão acentuados nos gastos, não pode evitar danos visíveis nos serviços essenciais. Os cortes vão ser mais selvagens que tudo o que foi considerado mesmo pelo governo Thatcher».

A chanceler alemã Merkel anunciou a sua versão da austeridade: cortes profundos dos gastos públicos imediatamente, aumentando anualmente o montante durante os próximos quatro anos. Anunciou também novos impostos sobre as linhas aéreas, os quais, segundo anunciaram imediatamente as companhias aéreas, iriam ferir severamente a sua capacidade de reduzir os balanços negativos e de salvá-las da falência. Os índices de desemprego da Alemanha vão subir, mas os benefícios aos desempregados serão reduzidos. Outros governos na Europa e os Estados Unidos têm vindo a pedir à Alemanha que gaste mais e exporte menos, para restaurar a procura mundial. Merkel rejeitou estes pedidos, dizendo que a sua prioridade era a redução da dívida.
O novo primeiro-ministro do Japão, Naoto Kan, advertiu o país que a situação da dívida é tão má que o país pode enfrentar uma situação comparável à da Grécia. Para remediar isto, propôs alguns aumentos de impostos, mais regulamentação da área financeira, e novos tipos de despesas públicas.

No meio de toda esta super-austeridade no Norte, ocorreu uma coisa notável que parece não ter merecido praticamente atenção. Como todos sabem, a Espanha é um dos muitos países europeus actualmente em dificuldades económicas devido aos enormes rácios da dívida. Em 30 de Maio, a Fitch Ratings juntou-se a outras empresas de rating na redução da classificação de Espanha de AAA para AA+. A questão é porquê. No dia anterior, o parlamento espanhol tinha aprovado os mais profundos cortes orçamentários dos últimos 30 anos.

Cortes orçamentários têm sido o que a Alemanha e outros tem pedido para a Grécia, Espanha, Portugal e outros países ameaçados pelo excesso de dívida. A Espanha respondeu a esta pressão. E, só por tê-lo feito, a Fitch Ratings baixou a sua classificação. Brian Coulton, a pessoa responsável da Fitch pela classificação da Espanha, disse na declaração em que se baixava a classificação de Espanha: «O processo de ajustamento para um nível mais baixo do sector privado e da dívida externa vai reduzir materialmente a taxa de crescimento da economia espanhola a médio prazo».

Cá está: preso por ter cão e preso por não ter. Os especuladores financeiros criaram uma desastrosa queda da economia-mundo. A bola foi então lançada para os Estados, para que resolvessem o problema. Os Estados têm menos dinheiro e mais exigências a pender sobre eles. Que podem fazer? Podem pedir emprestado, até que aqueles que emprestam deixem de o fazer, ou exijam taxas de juros demasiado altas. Podem aumentar impostos, e as empresas vão dizer que esses aumentos reduzem a sua capacidade de criar empregos. Podem reduzir gastos. E além da terrível dor que infligem em todos, mas especialmente nos mais vulneráveis, esta acção também reduzirá a possibilidade de crescimento, como o sr. Coulton assinala para Espanha.

Claro, há um enorme campo para reduzir gastos – o militar. Gastos militares criam empregos, mas muito menos do que se o dinheiro fosse usado noutros sectores. Isto não se aplica só aos maiores gastadores, como os Estados Unidos. Um aspecto praticamente ignorado dos problemas de dívida da Grécia é o dos pesados gastos militares. Mas estão os governos dispostos a reduzir significativamente os gastos militares? Não parece muito provável.

Que podem então os Estados fazer? Estão a tentar fazer uma coisa hoje, e outra coisa amanhã. No ano passado, foram os estímulos. Este ano, a redução da dívida. No ano que vem, serão os impostos.

Em qualquer caso, a situação global será cada vez pior.

Poderá a China salvar-nos? Stephen Roach, o analista muito perspicaz do Morgan Stanley, parece achar que sim, desde que o governo «estimule o crescimento privado». Nesse caso, salários crescentes serão contrabalançados pela produtividade mais alta. Talvez. Mas o governo chinês tem sido resistente a essa política até agora, não por razões económicas, mas políticas. O seu esforço de manter a estabilidade política tem sido primordial até agora. Além disso, mesmo Roach tem uma grande temor – ataques à China em Washington que conduzam a sanções comerciais. Pela minha parte, penso que essa é uma alta probabilidade, à medida em que a situação económica dos EUA continue a deteriorar-se.

A saída de tudo isto não é um pequeno ajuste aqui ou ali – seja da variedade monetarista ou keynesiana.

Para emergir da caixa económica na qual o mundo se encontra confinado é preciso uma profunda reformulação do sistema-mundo. Isto certamente terá de acontecer, mas quando?

Retirado, com ligeiras alterações, de Esquerda.

de Immanuel Wallerstein – Set16.2010

Enhanced by Zemanta

Sem comentários:

Enviar um comentário