sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O papel do consumo no enredo conjugal

A new hangout in Lisbon, the Docas.Image via Wikipedia
António Campos


Quem é mais importante conhecer: o indivíduo enquanto consumidor ou a família enquanto unidade consumidora? Qual das opções garante aos estudiosos uma efectiva radiografia do consumo, conhecer com mais rigor as expectativas, as necessidades, as condições de vida, numa dada conjuntura?

Enquanto foram as ciências económicas e financeiras que pontificaram nos estudos sobre o comportamento do consumidor, o fundamental das investigações incidia sobre o consumo familiar: o tipo de despesas, as respectivas percentagens por item de despesa, a evolução dessas despesas em função de uma dada conjuntura e da repartição do poder aquisitivo.

A família era a unidade de consumo em que se revia a economia, os mecanismos do mercado. Essa lógica diluiu-se com a ascensão do individualismo. Tal lógica foi, é (e ameaça ser) tão poderosa que as despesas familiares vivem subordinadas ao indivíduo. O assunto pode parecer insignificante, mas não é. Deixámos de saber como é que a família se comporta no consumo, que relações de poder nela se estabelecem, quais os papéis masculinos e femininos perante o orçamento familiar, em que termos se estabelece essa gestão, como se decidem as compras. Não conhecer a família no consumo é perder uma dimensão fundamental dos seus valores e atitudes na vida quotidiana.

“O enredo conjugal, uma viagem à realidade quotidiana do consumo”, por Cataina Delaunay, trabalho editado pela Comissão para Igualdade e para os Direitos das Mulheres (Lisboa, 2001) é nesse aspecto um livro singular, um acontecimento editorial que não se pode silenciar. Não dispomos praticamente de bibliografia semelhante. É facto que dez anos alteraram a realidade social, mas há dados estruturais que merecem ser reflectidos. O consumo é um dado inescapável entre o espaço público e privado, o consumo da família reflecte a divisão sexual do poder doméstico e da tomada de decisão, a toda a hora. Pode haver conflitos nas opções de consumo, a representação do consumo é distinta entre homens e mulheres, bem como a sua repartição e fruição. As comunicações comerciais procuram estar atentas para actuar dentro da família e dos respectivos membros. A autora lança o seu olhar sobre o poder doméstico, a função do consumo na família e a natureza dos papéis conjugais e conclui que é preferível falar em conjugalidades em vez de conjugalidade quando se fala do consumo familiar.

É óbvio que o género é um princípio estruturante do poder doméstico, é o reflexo do dinheiro e da orientação das compras, dos rendimentos do marido e da mulher, do tipo de contas que o casal estabelece, do controlo do dinheiro, da negociação entre ganhos e gastos, mesmo da gestão das poupanças. A autora destaca um conjunto de testemunhos para nos referir que o uso do dinheiro depende do modo como ele chega, dizendo: “A forma como o poder se encontra distribuído pelos membros da família, designadamente no casal, corresponde a diferentes modos de organização da vida doméstica e a formas diversas de conjugalidade. As relações de poder constituem um importante elemento das estruturas e dinâmicas familiares… O comando familiar não pertence a um só membro, sendo confiado, em cada caso concreto, a quem tem uma maior adequabilidade para o exercer”.

O consumo familiar é hoje uma dimensão fundamental da sociologia do consumo. Aqui se enlaçam os papéis individuais nas compras familiares, o significado do dinheiro de acordo com o género e o significado de quem “domina” a decisão de comprar. Os testemunhos recolhidos por Catarina Delaunay são elucidativos, sobretudo o espírito de negociação e a forma como os objectos se alinham na escolha do casal, a diferença de olhares sobre a casa, o espaço e o respectivo recheio, a ocupação de lazeres, a escolha do carro e como de todas essas actividades de consumo existe harmonia ou conflito entre a actividade profissional e vida familiar. A conclusão a extrair é de que há novos ideais igualitários que nem sempre são alcançados na prática da vivência conjugal.

A autora debruça-se seguidamente, com base na teoria das compras, sobre a forma como se decide no casal as refeições, qual é o papel que cada um dos membros da família atribui aos objectos e daqui passa-se para a conclusão de que a manutenção de responsabilidades pelas tarefas associadas ao lar e à família tem hoje uma partilha mais equitativa em termos de afazeres domésticos do que no passado recente. Isto porque a maioria das mulheres vive duras condições de trabalho, auferindo, regra geral, remunerações mais baixas do que o homem, pelo que ainda são patentes alguns estereótipos tradicionais.

Em suma, é mais correcto falar-se em conjugalidades, há variações significativas em termos de organização familiar que diferem de casal para casal. E conclui a autora: “Podemos identificar duas modalidades de organização conjugal. Encontramos um tipo de organização em que os limites são rígidos e as estratégias inflexíveis e, por outro, um tipo de organização menos rígida. O desenvolvimento da aventura conjugal passa por um período de experimentação inicial, de descoberta das diferenças e das soluções para os problemas que se colocam. A aprendizagem da vida a dois, a construção dessa pequena comunidade que é o casal, implica a criação e re-inventação de uma série de valores enormes de conduta, a interiorização de um conjunto de rituais quotidianos”.

A comunicação dentro deste enredo conjugal tem a ver com a existência ou não de filhos, de planos para o futuro, dos estilos de vida e da natureza dos valores que incorporam o casal. Nenhuma destas radiografias é estática, é indispensável que sejam revistas periodicamente para deter informação útil para o mercado e para os direitos e responsabilidades que devem enformar a vida dos consumidores enquanto instrumento dos desenvolvimento e da qualidade de vida.

O estudo sobre o enredo conjugal precisa de continuar sob investigação permanente. As alterações na estrutura familiar são permanentes, os papéis são muito dúcteis, daí a permanência dos sobressaltos daí advenientes no mercado de consumo. Impõe-se um estudo sob a forma de observatório, independente dos interesses dos consumidores, produtores ou prestadores de serviços, para que se conheça com a actualização possível a essência deste enredo conjugal e o seu peso na economia e na sociedade.

Beja Santos, Out.15.2010
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