quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A tez da crise

Protests on Austurvöllur because of the Icelan...Image via Wikipedia

António Campos

Existem teorias económicas que resistem a morrer. Mesmo estando na mais profunda bancarrota intelectual e com o valor das suas predições em zero, continuam a caminhar como os mortos-vivos do vudu. A sua relevância empírica pode ser nula, mas continuam a ser usadas para justificar a política económica neoliberal. São verdadeiras teorias económicas zombi (e respondem a um novo acrónimo, TEZ).

O exemplo mais recente é o apelo para regressar à austeridade fiscal e às “finanças públicas sãs”. Na Europa e nos Estados Unidos o coro das posições conservadoras é unânime. A sua mensagem central é simples: já se tentou o resgate da economia com um gigantesco estímulo fiscal e agora é tempo de deixar o sector privado fazer o resto. Seja porque se pense que o estímulo fracassou, seja porque teve sucesso mas já deu tudo o que podia oferecer, a conclusão é a mesma: o défice fiscal constitui um perigo mortal para a economia a longo prazo.

A narrativa é completada com várias referências à teoria económica neoclássica, em particular a chamada “equivalência ricardiana”. Segundo este princípio (com raízes na obra de David Ricardo) um estímulo fiscal não tem nenhum efeito porque os agentes prevêem que o défice deverá ser financiado posteriormente com um aumento de impostos. Para se prepararem contra esses encargos adicionais, os agentes pouparão os recursos que lhes chegam via estímulo fiscal e a procura agregada permanecerá sem mudanças.

A narrativa conservadora continua: o défice pode cobrir-se com endividamento do governo, o que se supõe conduzirá a um aumento na taxa de juros. Isto reduziria o investimento agregado e tiraria oportunidades ao sector privado para realizar investimentos produtivos. O sector público “estorvaria” o bom desempenho do sector privado. Em síntese, o estímulo fiscal é inútil ou pernicioso. Nos Estados Unidos e na Europa é claro para onde vai esta perigosa argumentação: ainda em plena recessão, é melhor desfazer-se do estímulo fiscal.

Mas a simplicidade da mensagem oculta a falácia do raciocínio que está baseado nos pressupostos de expectativas racionais e do rendimento do ciclo vital. Estes são dois exemplos de uma pseudo-teoria carregada de erros e simples tolice. É uma teoria zombi.

Segundo a noção do rendimento do ciclo vital, os consumidores gostariam de manter uniforme o seu plano de consumo ao longo da sua vida, e pouparão agora o estímulo fiscal para poder cobrir os aumentos de impostos que eles “sabem” virão no futuro. Isso é absurdo, pois vários estudos mostram que os agentes gastam de facto uma parte do estímulo fiscal numa recessão (mesmo quando aumenta a propensão média para a poupança). Por trás disto encontra-se a muito desacreditada teoria de expectativas racionais (que valeu um prémio Nobel a Robert Lucas), um dos melhores exemplos da “economia vudu”.

O mais importante é que este tipo de raciocínio ignora tudo sobre a natureza da despesa pública e dos fluxos financeiros numa economia monetária moderna. Para começar, uma injecção de recursos na economia tem um efeito multiplicador, impulsiona o crescimento e melhorará a posição fiscal do governo: a arrecadação aumentará e o défice será menor. Se for complementada com políticas sectoriais bem delineadas, pode promover mudanças estruturais interessantes.

A ideia da equivalência ricardiana assenta numa analogia errada entre as finanças de uma família e o governo: a restrição de orçamento das primeiras não pode equiparar-se à das finanças públicas. Além disso, um aumento do défice nos Estados Unidos tende a reduzir a taxa de juros porque implica uma forte injecção de reservas no sistema bancário e isso deprime o preço dessas reservas de forma significativa.

O mais importante é que a visão zombi assenta na premissa de que numa economia existe um acervo fixo de poupança para financiar a actividade produtiva. Um olhar rápido ao funcionamento de uma economia monetária moderna demonstra que o mundo não se move assim. Na sua função de criação monetária, os bancos não recorrem aos seus depósitos para fazer um empréstimo; geram um depósito quando fazem um empréstimo.

A teoria económica zombi distorce a realidade. Essa é a sua função na turbulenta guerra ideológica que enquadra a luta pelo poder. Os exemplos que mencionámos acima relacionam-se com o episódio específico do debate sobre o estímulo fiscal nos Estados Unidos e na Europa. Mas esta batalha não deve confundir-se com a guerra. No fundo, a teoria económica zombi procura perpetuar o predomínio de uma estrutura de poder predadora. A tirania do neoliberalismo é bem servida por esta teoria económica sem sustento racional. A crítica desta teoria, e de todo o pensamento económico, é uma tarefa indispensável numa transformação para uma economia na qual a responsabilidade social seja realmente a prioridade.

de Alejandro Nadal
Set.16.2010
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