terça-feira, 19 de outubro de 2010

Estamos a viver acima das nossas possibilidades?

Living in Hong KongImage by Stuck in Customs via Flickr
António Campos

Este artigo critica o argumento utilizado por aqueles que desejam reduzir o estado de bem-estar alegando que gastamos mais do que podemos. O artigo assinala que a evidência não avaliza tal postura; mostra que os recursos existem, mas o Estado não os recolhe. No que diz respeito ao endividamento privado, este deve-se primordialmente à diminuição dos rendimentos do trabalho como percentagem do rendimento nacional.

Há uma frase que aparece constantemente na sabedoria convencional do nosso país, reproduzida não só pelos porta-vozes do pensamento neoliberal (que têm grandes caixas de ressonância nos meios de informação e persuasão de maior difusão do país), como também por dirigentes do partido socialista governante em Espanha (e não digamos já por dirigentes do maior partido da oposição, que fizeram de tal frase a sua palavra de ordem eleitoral), que assinala que «há que reduzir os nossos gastos, tanto públicos como privados, porque durante todos estes anos temos vindo a gastar mais do que deveríamos tendo em conta o nível de riqueza que temos». E, como prova disso, referem-se à elevada dívida pública do estado espanhol, à qual se acrescenta também a elevada dívida privada. Este é o novo dogma que tanto o governo como a maioria dos partidos da oposição (excepto as esquerdas não dirigentes) repetem constantemente e que os meios de maior difusão promovem vinte e quatro horas por dia. Daí que o debate político e mediático se centre em como reduzir a despesa, tanto privada como pública, a fim de reduzir tal endividamento. Tal debate dá-se também a nível europeu, sobretudo na sequência do endividamento dos PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Spain), que quer dizer em inglês porcos, insulto que pensam ser merecido ao considerarem que a crise do euro foi provocada pelo crescimento desmesurado e irresponsável dos défices e das dívidas públicas destes países devido à sua excessiva protecção social. Até aqui o dogma.

O que é extraordinário é que este dogma se reproduza tão intensamente quando a evidência, facilmente acessível, mostra o erro de tal postura. Vejamos os dados. E perguntemos: Gasta Espanha no seu estado de bem-estar mais do que pode gastar tendo em conta o seu nível de desenvolvimento económico? Os dados mostram que não. Na verdade, gastamos muito menos do que nos corresponderia tendo em conta o nível de riqueza que temos. A Espanha não é um país pobre, pois a sua riqueza, medida pelo seu PIB per capita, é já 94% da média dos países mais ricos da UE-15. E, em contrapartida, a despesa pública social per capita não é 94% da média da UE-15, mas apenas 74%. Isto é, gastamos aproximadamente 66.000 milhões de euros menos do que deveríamos gastar tendo em conta o nível de riqueza que temos.

E, por que não gasta este dinheiro o estado? A resposta não pode ser que o país não tenha este dinheiro (tal como os neoliberais dizem). Na verdade, Espanha tem-no, ainda que não o seu estado. O facto de o estado não gastar tal quantidade de dinheiro deve-se a que não o recolhe, e portanto não o tem. E a razão mais importante para que isto ocorra é fácil de ver. Chama-se poder de classe. Os 30% de rendimento superior do país (burguesia, pequena burguesia e classe média de rendimento alto) têm um poder económico, político e mediático enorme e não pagam os mesmos impostos que pagam os seus homólogos na maioria dos países da UE-15. E como têm uma enorme influência nos meios de comunicação (a maioria dos criadores de opinião pertence a estas classes), os meios de maior difusão nunca falam disso. Esta situação ocorre em todos os PIGS, onde as direitas tiveram um enorme poder (e onde as esquerdas dirigentes foram contaminadas com o pensamento neoliberal - a ideologia dos ricos - tal como o mostrou aquela famosa frase de que «baixar impostos é de esquerda». E baixaram-nos, não só uma, mas dez vezes. É também nestes países onde as fraudes fiscais atingem enormes dimensões, beneficiando disso os rendimentos superiores. Não são, pois, as classes populares dos PIGS, que estão a sofrer enormes cortes nas suas transferências (pensões) e serviços públicos (previdência, educação e serviços sociais, entre outros), as merecedoras do termo PIGS, mas as classes abastadas aquelas que, tendo beneficiado enormemente durante os anos de bonança (os lucros empresariais em Espanha cresceram 73% durante o período 1999-2005, mais do dobro da média da UE-15, enquanto os custos laborais aumentaram apenas 3,7%, cinco vezes menos do que a UE-15), não pagaram o que deviam ao Estado.

O mesmo poder de classe explica o endividamento privado. Que as famílias espanholas estão endividadas é um facto bem conhecido. Mas o que não se analisa é: por que estão endividadas? E a resposta é que, durante estes últimos anos, houve uma enorme polarização dos rendimentos em Espanha e a capacidade aquisitiva das famílias foi diminuindo. A percentagem que os rendimentos do trabalho representam sobre os rendimentos nacionais foi descendo espectacularmente.
Entretanto, os rendimentos do capital dispararam, atingindo níveis exuberantes. A diminuição da massa salarial implicou a necessidade de endividar-se, a fim de manter o seu padrão de vida (e isso apesar de o número de pessoas que trabalham nas famílias ter aumentado, como resultado da integração da mulher no mercado de trabalho). Por outro lado, os enormes rendimentos de capital investiram, mas não nas empresas da economia real (onde se produzem bens e serviços), pois a rentabilidade neste sector era baixa, como consequência da escassa procura, devida à diminuição da capacidade aquisitiva das classes populares. Em seu lugar, investiram no capital especulativo, e em Espanha no sector imobiliário, criando a bolha imobiliária que, ao rebentar, foi a maior causa da crise em Espanha, com muito dinheiro emprestado dos bancos alemães e franceses. O estado, que tem os ingressos do estado mais baixos da UE-15, devido a que os ricos não pagam os seus impostos, teve de se endividar, sendo a mesma banca alemã e francesa quem comprou tal dívida.
Quando a especulação entrou em colapso, os bancos centrais e periféricos depararam com um enorme problema. Quando nos é pedido que apertemos o cinto, quer dizer que temos que pagar aos bancos Isto é o que acontece e não nos é dito nos maiores meios de comunicação. E assim andamos.

de Vicenç Navarro
Set.3.2010
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