quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Agriculturas e crise climática

Agriculture in the Virgin Islands? (LOC)Image by The Library of Congress via Flickr


António Campos

A agricultura e o sistema alimentar industrial são a principal causa do aquecimento global e da crise climática. Em contraste, as agriculturas camponesas e indígenas, biodiversas e descentralizadas, são o factor mais importante para enfrentar esta crise e sair dela, para além do facto fundamental de serem as que alimentam a maior parte da humanidade. Apesar disto, a visão que predomina nas negociações internacionais sobre o clima recolhe os interesses das empresas contra os e as camponesas. A tentativa agora é integrar a agricultura e os solos no comércio de créditos de carbono, o que significaria um novo subsídio às transnacionais de agronegócios, favorecendo mais a agricultura industrial e maior despojo às formas de vida camponesas.

Os dados sobre as fontes do aquecimento global variam segundo a fonte, mas coincidem em assinalar a agricultura industrial como uma das maiores fontes de emissão de gases de efeito estufa, juntamente com a geração de energia e transportes baseados em combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão). As actividades agrícolas aparecem como responsáveis por entre 11 e 15 por cento das emissões. Embora este dado já seja grave, apresentá-lo desagregado das emissões da cadeia agro-alimentar industrial oculta uma realidade muito pior quanto à sua responsabilidade pela crise climática. Se se considerarem juntos a agricultura industrial e o sistema alimentar industrial a que está necessariamente ligada, há que atribuir-lhes uma parte significativa das emissões dos transportes; outra percentagem por deflorestação e mudança de uso do solo (em avanço de fronteira agrícola e em uso de papel: aproximadamente 75 por cento do papel que se produz é para propaganda e embalagens, que são somente exigência das grandes cadeias de vendas), e a quase totalidade do metano que as lixeiras emitem devido à putrefacção de lixo orgânico, que na sua maioria são restos de alimentos que se deitam fora nas cidades.

Segundo o excelente trabalho da GRAIN, “La crisis climática es una crisis alimentaria” [1], baseado na análise de dezenas de relatórios, a agricultura e o sistema alimentar industrial são responsáveis por entre 44 e 57 por cento das emissões globais de gases de efeito estufa. Chegam a esta conclusão agregando os seguintes dados: as actividades agrícolas representam de 11 a 15 por cento das emissões; a mudança de uso de solos, desmonte e deflorestação causam de 15 a 18 por cento adicionais; o processamento, empacotamento e transporte de alimentos provoca 15 a 20 por cento, e a decomposição de lixo orgânico de 3 a 4 por cento.

Por outro lado, a GRAIN também faz um cálculo cuidadoso do papel dos solos na crise climática: enquanto a sua degradação é fonte de emissões, se o solo estiver vivo, com matéria orgânica viva e natural que não é eliminada por fertilizantes sintéticos e agrotóxicos e se se cuidar segundo as diversas condições locais, com uma combinação de diversidade e rotação de cultivos, incorporação de matéria orgânica e outras, em poucas décadas poder-se-ia devolver aos solos a sua capacidade natural de reter carbono, e absorver quase dois terços do excesso de gases de efeito estufa que existem actualmente na atmosfera. Mas esta forma de cuidar o solo só é possível mediante a agricultura camponesa e familiar, livre de tóxicos, descentralizada e diversa, adaptada a cada local [2].

No entanto, interesses industriais pretendem agora explorar essa capacidade do solo para absorver e reter carbono para cobrar “créditos de carbono”, usando o solo como escoadouro. Por exemplo, as indústrias que promovem o chamado biochar (carvão vegetal). Trata-se de semear extensas áreas de monocultivos de árvores para queimá-los, convertendo-os em carvão negro, e depois enterrá-lo, teoricamente para “sequestrar” carbono e aumentar a fertilidade do solo.

Segundo os seus proponentes – indústrias que aspiram a fazer grandes lucros –, é também uma forma de geo-engenharia, porque com 500 milhões de hectares ou mais poder-se-ia esfriar o planeta. Cinicamente dizem que é uma tecnologia indígena amazónica. Mas o biochar e as formas indígenas de queimar e enterrar são extremamente diferentes. No primeiro caso trata-se de exercer violência sobre o solo, primeiro com grandes plantações e agrotóxicos, depois enterrando carvão de forma súbita e massiva, que segundo estudos inclusive poderia desequilibrar mais o solo e libertar o carbono retido de forma natural. Além disso, parte do pó de carvão negro liberta-se para a atmosfera no processo e tem um efeito estufa maior que o dióxido de carbono, pelo que outros estudos avaliam que até poderia aumentar as emissões.

Devastar milhões de hectares com plantações e agrotóxicos para depois queimá-las soa realmente a enfermiço. Ao invés, a forma indígena baseia-se em milhares de anos de sabedoria acumulada de manejo diverso e adaptado a cada região, a diferentes solos e a trabalhar respeitando as condições naturais da cada local, de cada solo.

Há mais propostas da indústria para transformar a agricultura e a alimentação no seu campo de lucro particular enquanto o planeta frita e aumenta a fome. Por isso, a Via Campesina apelou, face à cimeira climática que se realizará em Dezembro em Cancún, a denunciar aí e em cada lugar onde estejam as ditas propostas, e a mostrar as verdadeiras alternativas camponesas, tarefa urgente que nos incumbe a todos.

Sílvia Ribeiro, Set3.2010

[1] GRAIN, “La crisis climática es una crisis alimentaria: La agricultura campesina puede enfriar el planeta”, emCrisis climática: falsos remedios y soluciones verdaderas, págs. 25-33, 2010.
[2] Camila Montecinos, Cuidar el suelo.
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