sexta-feira, 7 de maio de 2010

O que se passa no quotidiano 2)

Everyday (Dave Matthews Band song)Image via Wikipedia


António Campos

Mesmo fazendo emergir meras silhuetas ou contornos do social através da sua alusão sugestiva, em vez da sua ilusão de posse, cabe perguntar: o que se passa no quotidiano?

O quotidiano - costuma dizer-se - é o que se passa todos os dias: no quotidiano nada se passa que fuja à ordem da rotina e da monotonia. Então o quotidiano seria o que no dia a dia se passa quando nada se parece passar. Mas só interrogando as modalidades através das quais se passa o quotidiano - modalidades que caracterizam ou representam a vida passante do quotidiano - nos damos conta de que é nos aspectos frívolos e anódinos da vida social, no «nada de novo» do quotidiano, que encontramos condições e possibilidades de resistência que alimentam a sua própria rotura.

Detenhamo-nos, com efeito, nesta simples constatação: se o quotidiano é o que se passa quando nada se passa - na vida que escorre, em efervescência invisível -, é porque «o que se passa» tem um significado ambíguo próprio do que subitamente se instala na vida, do que nela irrompe como novidade («o que se passou?»), mas também do que nela flui ou desliza (o que se passa...) numa transitoriedade que não deixa grandes marcas de visibilidade.

O que se passa no quotidiano é «rotina», costuma dizer-se. A ideia de rotina é próxima da de quotidianeidade e expressa o hábito de fazer as coisas sempre da mesma maneira, por recurso a práticas constantemente adversas à inovação. É certo que, considerado do ponto de vista da sua regularidade, normatividade e repetitividade, o quotidiano manifesta-se como um campo de ritualidades. A rotina é, aliás, um elemento básico das actividades sociais do dia a dia. No «conhecimento prático» ou «quotidiano» a rotina aparece como uma espécie de «cunha» entre as acções «inconscientes» (tomada a expressão no seu corrente sentido psicológico) e aquelas que são levadas a cabo de uma forma deliberadamente consciente.(…). No entanto, as raízes etimológicas de rotina apontam para outro campo semântico, associado à ideia de rota (caminho), do latim via, rupta, donde derivam as expressões «rotura» ou «ruptura»: acto ou efeito de romper ou interromper; corte, rompimento, fractura.

Ora é nestas rotas - caminhos de encruzilhada entre a rotina e a ruptura - que se passeia a sociologia do quotidiano, passando a paisagem social a pente fino, procurando os significantes mais do que os significados, juntando-os como quem junta pequenas peças de sentido num sentido mais amplo: como se fosse uma sociologia passeante, que se vagueia descomprometidamente pelos aspectos anódinos da vida social, percorrendo-os sem contudo neles se esgotar, aberta ao que se passa, mesmo ao que se passa quando «nada se passa». Daí as maledicências e apodos que por vezes se dirigem a uma tal perspectiva analítica e metodológica.

O paralelismo com o que aconteceu com a pintura de Caravaggio e Velázquez parece evidente. Do mesmo modo que as cenas banais da vida quotidiana foram consideradas um tema de pinturas de «género inferior» (os incómodos plebeus das tabernas...), também a sociologia do quotidiano é vista como uma sociologia «superficial» (facilmente seduzida pelo anódino, anedótico, inessencial) ou «indiscreta» (tentada pelo proibido, oculto, subterrâneo). Na pintura, como na produção científica, as inovações de estilo sempre afrontaram os padrões convencionais de observação…

Sociologia da vida quotidiana, José Machado Pais , 2007(adaptado)
(continua)


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