sexta-feira, 14 de maio de 2010

Moralização da economia e da vida pública 1)

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António Campos

Porquê todo este rumor sobre a moralização da economia e da vida pública? O que explica esta preocupação crescente com o tema? Trata-se de uma subida de valores ou de uma reacção causada pela discrepância entre expectativas e possibilidades, entre o ideal e o real, entre o mundo simbólico da indignação e o mundo estratégico da actuação? Será uma preocupação que veio para ficar ou tenderá a esgotar-se?

Face à derrocada da ENRON e ao seu impacto nos mercados financeiros, ou confrontadas com as mais recentes alegações de subornos pagos pela BAE Systems a um príncipe saudita na compra de armamento, as máximas neoliberais do prémio Nobel Milton Friedman de que a única responsabilidade social das empresas é a de aumentar os proveitos dos seus accionistas e de que a corrupção é uma intrusão do governo na eficiência do mercado sob a forma de regulamentação têm hoje menos aceitação nos círculos empresariais e políticos e no público em geral do que teriam nas décadas de 60 e 70.

A moralização da economia e da vida pública desenvolveu-se radicalmente nas últimas duas décadas, num contexto de rápida transformação do sistema internacional e das economias ocidentais. Com o final da guerra fria e a internacionalização das economias e mercados financeiros em finais da década de 80, assistimos a uma proliferação de iniciativas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira. A década de 90 viu florescer um conjunto de novos actores governamentais e não governamentais dedicados, única e exclusivamente, a estas matérias. Do mesmo modo, no privado, um número crescente de corporações e de empresários assume uma postura reformista (genuína ou estratégica), colocando as preocupações éticas no centro do seu modelo de gestão e do seu modo de fazer negócios.

Uma série de desenvolvimentos contribuiu para esta crescente tomada de consciência sobre a moralização da vida pública e económica, entre outros:

- Uma maior actuação por parte de organizações governamentais e não governamentais internacionais contribuiu para que o tema da corrupção e da moralização da economia de mercado assumisse uma dimensão global. São disso exemplo, por um lado, as várias convenções internacionais/regionais contra a corrupção ou em prol de standards de governança para as multinacionais (Nações Unidas, OCDE, Conselho da Europa, etc.) e, por outro lado, as denúncias da Amnistia Internacional sobre a violação de direitos humanos por regimes não democráticos e a exploração de trabalho infantil pelas empresas/ ocidentais, a condenação da corrupção tout court (seja ela administrativa, política ou em transacções comerciais internacionais) ; a transparência internacional, os protestos do Greenpeace e de outros movimentos e partidos ecologistas relativamente ao impacto negativo no ambiente de certas políticas ou negócios, etc.;
- Uma alteração dos paradigmas de ensino sobre economia e política e uma consequente alteração dos planos curriculares em que as questões de ética assumem cada vez mais uma maior centralidade no estudo das instituições e dos comportamentos sociais. Hoje um número considerável de universidades oferece nos seus cursos de gestão, políticas públicas, administração e política em geral cadeiras que versam sobre estas matérias;
- Uma maior acuidade dos órgãos de comunicação social e dos tribunais na detecção e condenação de certas práticas. Não só existe uma maior intervenção de um núcleo duro de actores com responsabilidades nesta matéria, mas também uma crescente interd pendência dos mesmos, na medida em que uma magistratura nacional depende, por vezes, de regras de cooperação internacionais ou multilaterais), para o exercício dás suas competências relativamente a uma Investigação em curso no seu território jurisdicional. Os governos têm vindo a recorrer a várias iniciativas e instâncias internacionais como alternativa à insuficiência da soberania do Estado no combate e controlo dos complexos mecanismos transnacionais da corrupção.

A moralização da vida pública, através da luta contra a corrupção, e a moralização da economia de mercado (ou, em concreto, do sistema capitalista) tomaram-se duas dimensões da mesma cruzada, enformam um movimento global de mudança de valores. Não se trata apenas de um conjunto de medidas e regras adoptadas a nível internacional, através das quais se procura regular o comportamento de actores transnacionais em relação aos agentes públicos ou privados, mas também de uma série de novos actores, processos e impactos, isto é, de visões sobre o tipo de sociedade global que se pretende construir através deste esforço de moralização, mais marcado por contradições e inconsistências do que por certezas sobre o futuro.

A questão está em saber se esta tomada de consciência colectiva significa, de facto, uma subida de valores ou se se trata apenas de uma reacção pontual que tenderá a esvanecer-se à medida que outras preocupações globais assumam um maior destaque. Embora a corrupção e a moralização da economia se tenham transformado em temas importantes no debate público e nas avaliações retrospectivas dos cidadãos face ao desempenho das instituições públicas e de mercado, não existe qualquer garantia de que se mantenham com os mesmos níveis de interesse e a mesma prioridade na agenda de reforma em anos vindouros.

Mais ainda, embora possamos falar de uma consciencialização global para as externalidades negativas da corrupção e do funcionamento actual do sistema capitalista mundial (o que justifica a internacionalização das políticas e estratégias de controlo e de regulamentação), em geral, as campanhas moralizadoras da vida pública e privada continuam a ser travadas a nível nacional, compostas por actores e estratégias que visam coibir a natureza e dimensão do fenómeno num espaço nacional e avaliadas por uma opinião pública, também essa, marcadamente
nacional.

Por essa razão, toma-se fundamental estudar as atitudes e práticas dos cidadãos neste contexto de rápida transformação do Estado e da economia, em que as questões éticas emergem no centro dessa mudança. Como se relacionam estes três conceitos e de que modo as atitudes e práticas dos cidadãos são importantes para compreender as dinâmicas e especificidades dessa interacção complexa?

Ética, Estado e Economia, Luís de Sousa (adaptado)


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