segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O determinismo demográfico - ciência ou ideologia?

against determinismImage by moirabot via Flickr

António Campos

Este artigo questiona o determinismo demográfico que assume que a transição demográfica torna o sistema de pensões inviável em Espanha. A ignorância sistemática por parte dos autores promotores do determinismo demográfico das críticas que se fizeram das suas teses, demonstra o carácter ideológico, em lugar de científico, de tais teses.

Em qualquer área de conhecimento científico exige-se que os autores sejam capazes de rebater as teses que questionam as suas próprias teses. Ignorar as críticas, sem lhes responder, é perder credibilidade, pois transformam o projecto científico em mera propaganda política, por muito que se vista de científica. Esta observação aplica-se a grande número de teses catastróficas do sistema de pensões, que baseiam a sua visão de insustentabilidade do sistema de pensões públicas num determinismo demográfico, que foi questionado extensamente. Posto que estes questionamentos são amplamente conhecidos, ignorá-los implica uma violação da integridade que se exige em qualquer projecto científico. Se um investigador continuasse a promover um tratamento médico, apesar da evidência científica existente mostrar que esse tratamento é danoso, seria questionado e as suas credenciais científicas seriam retiradas. Pois o mesmo deve aplicar-se nas análises que continuam a utilizar a evolução demográfica como causa da inviabilidade das pensões. Parece-me muito bem que tais teses continuem a ser escritas e gozem de caixas de ressonância nos meios de comunicação, mas, para que sejam levadas a sério, deveriam responder aos argumentos daqueles que mostraram o erro dos pressupostos nos quais se baseiam tais projecções de insustentabilidade. A resposta a tais trabalhos, mostrando que são erróneos, seria o passo necessário para ganhar a credibilidade científica com que se apresentam, e da qual até agora carecem. Ignorar tais trabalhos, e continuar a repetir as teses catastróficas, transforma as suas teses em mera propaganda ideológica.

Para aqueles leitores interessados no assunto permito-me sugerir-lhes que leiam artigos que questionam os pressupostos das teses do determinismo demográfico, concretamente a necessidade de:

1. Não confundir esperança de vida média num país com a longevidade dos seus cidadãos, confusão que constantemente se faz por parte dos deterministas demográficos. O facto da esperança de vida ter crescido substancialmente em Espanha deve-se primordialmente à descida da mortalidade infantil, mais que ao crescimento de anos de vida dos idosos, o qual foi muito menor que o aumento da esperança de vida média do país [1].

2. A longevidade das pessoas em Espanha varia segundo a sua classe social. Espanha é um dos países com maiores desigualdades sociais na OCDE (o clube de países mais ricos do mundo). Um burguês vive dez anos mais que um trabalhador não qualificado com mais de cinco anos no desemprego. Existe um gradiente de mortalidade segundo a classe social. Daí que atrasar obrigatoriamente a idade de aposentação é profundamente injusto, pois implica que os trabalhadores não qualificados estarão a trabalhar mais dois anos para pagar as pensões de pessoas mais ricas que lhes sobreviverão muitos anos. É injusto, por exemplo, que a mulher da limpeza da Universidade tenha que trabalhar mais dois anos para pagar a minha pensão, quando eu, Catedrático de Universidade, lhe sobreviverei mais oito anos [2].

3. Os autores que propõem atrasar a aposentação mais dois anos pertencem todos eles a uma classe social que na sua maioria desfruta no seu trabalho. Esta não é a situação da maioria da classe trabalhadora neste país.

4. O ponto chave para determinar a viabilidade do sistema de pensões não é – como erroneamente se assume – o número de trabalhadores contribuintes por pensionistas. Este valor não é o valor determinante da viabilidade do sistema. Naqueles sistemas de pensões baseados em contribuições procedentes do mercado de trabalho, o ponto chave é a quantidade de contribuições para o sistema de Segurança Social, que depende mais da produtividade que do número de trabalhadores, bem como do contexto político. Suponha o leitor que há quarenta anos (quando para produzir todo o alimento que a Espanha consumia era preciso 30% da população activa) tivessem havido vozes alarmistas apontando que em quarenta anos não haveria suficientes pessoas a trabalhar no campo para alimentar toda a população espanhola, pois as pessoas estavam a deslocar-se para as cidades. Pois bem, hoje 4% da população activa produz o que há quarenta anos produziam 30% e há, além do mais, um excedente na produção de alimentos. Aplique este símile e substitua alimento por pensões. O incremento da produtividade fará que em quarenta anos, o PIB tenha crescido enormemente (será mais do dobro do actual), com o que haverá mais recursos para pensionistas e não pensionistas que agora, ainda que a percentagem do PIB em pensões públicas passe de 8% para 15% [3]. Na realidade, há quarenta anos, Espanha gastava em pensões apenas 4%. Hoje gasta mais do dobro, 8%, e os não pensionistas têm mais recursos agora que antes.

5. Não há nada escrito na Bíblia, incluindo as Bíblias económicas, que indique que as pensões têm que se basear em contribuições do mercado de trabalho. Em muitos países, como a Dinamarca, procedem dos fundos gerais do Estado. E é muito duvidoso que um programa tão popular como as pensões não possa encontrar fundos para se sustentar.

Não há dúvida que o sistema de pensões deveria ser reformado, dificultando as pré-aposentações excessivas (que beneficiam o empresário, prejudicando o trabalhador), facilitando a integração da mulher no mercado de trabalho, permitindo voluntariamente o atraso da idade de aposentação e outras medidas. Mas, concluir a partir da necessidade destas reformas que o sistema é inviável, devido à transição demográfica, é insustentável em bases científicas. Penso que os catastrofistas não podem continuar a projectar catástrofes sem, ao menos, responder àqueles que questionam os pressupostos nos quais se baseiam as suas teses.



de Vicenç Navarro
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